31 de agosto de 2015

Quem eram os "filhos de Deus", de Gênesis 6:1-4?

_________________________________________________________________

Este capítulo faz parte da obra: “Exegese de Textos Difíceis da Bíblia”, ainda em construção.
_________________________________________________________________


Um dos textos mais absolutamente controversos é, certamente, o de Gênesis 6:1-4, que diz:

“Quando os homens começaram a multiplicar-se na terra e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram bonitas e escolheram para si aquelas que lhes agradaram. Então disse o Senhor: ‘Por causa da perversidade do homem, meu Espírito não contenderá com ele para sempre; e ele só viverá cento e vinte anos’. Naqueles dias havia nefilins na terra, e também posteriormente, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens e elas lhes deram filhos. Eles foram os heróis do passado, homens famosos” (Gênesis 6:1-4)

A grande dúvida reside em saber quem eram esses tais “filhos de Deus”, descritos no verso 1. A maioria dos intérpretes atuais entende que seja uma referência aos “descendentes de Sete” (que seriam justos), sendo que as “filhas dos homens” seria uma referência às “descendentes de Caim” (que seriam ímpias). Ambos teriam se unido por meio de casamento, e Deus se irou por isso e enviou o dilúvio. Mas outra boa parte dos eruditos crê que se trata realmente de anjos que deixaram suas posições no Céu e vieram a terra.

LINHA 1
LINHA 2
Os “filhos de Deus” são os descendentes de Sete
Os “filhos de Deus” são anjos
As “filhas dos homens” são as descendentes de Caim
As “filhas dos homens” são mulheres

Em primeiro lugar, é necessário fazermos uma breve exegese quanto aos termos “filhos(as) de Deus” e “filhos(as) dos homens” no Antigo Testamento. Um grande problema é que os teólogos modernos tem sempre a tendência de impor um conceito do Novo Testamento ao Antigo, ou vice-versa, incorrendo assim no mesmo erro de anacronismo já descrito no ponto 4 do capítulo anterior. É óbvio que no Novo Testamento a expressão “filhos de Deus” se aplica em primeiro lugar a seres humanos, de carne e osso, que fazem parte da Igreja ou corpo de Cristo na terra. No entanto, aqui não estamos falando de Novo Testamento, mas de um livro escrito há três mil e quatrocentos anos atrás, por Moisés.

O que devemos fazer não é impor o conceito neotestamentário sobre o Antigo, mas buscar chegar à concepção precisa que este termo tinha naquela época. Isso pode parecer surpreendente para muita gente, mas a expressão “filhos de Deus” simplesmente não existe no Antigo Testamento aplicado para seres humanos. Na única vez em que o termo aparece no Antigo Testamento fora de Gênesis 6:1 é no livro de Jó, onde os intérpretes concordam unanimemente que se trata de anjos (Jó 1:6)[1]. Muitos estudiosos afirmam que o livro de Jó é também de autoria de Moisés, o que daria ainda mais peso a este significado em Gênesis 6:1. Mesmo não havendo consenso quanto à autoria de Jó, ainda assim fica o fato de que não há nada no Antigo Testamento que remeta esta expressão a homens, mas apenas a anjos.

O que o Novo Testamento fez, principalmente através da pessoa de Jesus, e mais adiante pelos seus discípulos, foi ampliar o sentido de “filhos de Deus”, para significar não mais apenas os anjos, mas também aqueles que seguem a Jesus com inteireza de coração. Mas este é um conceito ampliado do Novo Testamento que de forma alguma deve ser imposto sobre o Antigo. Quando Moisés falava sobre “filhos de Deus” em Gênesis 6:1, ele não tinha em mente seres humanos terrenos, mas seres espirituais, angelicais.

E quanto à expressão “filhas dos homens”, que os intérpretes da primeira linha aplicam para a geração de Caim, que era ímpia? O Antigo Testamento simplesmente não mostra tal significado em lugar nenhum de seus 39 livros canônicos. Em lugar disso, o que ocorre é que a expressão é geralmente empregada para os seres humanos em geral, e nas vezes em que o termo é mais específico ele ironicamente recai sobre os homens justos, e não sobre os ímpios! Por exemplo, este termo é usado muitas vezes para o próprio profeta Ezequiel (ex: Ez.2:1,3,6,8; 3:1,3,4,10,17,25; 4:1,16; 5:1; 7:2; 8:5-6, etc). Ele também é aplicado ao profeta Daniel (em Daniel 8:17), e profeticamente a Jesus, em Daniel 7:13.

Em síntese, nem a expressão “filhos de Deus”, nem a expressão “filhas dos homens”, favorecem a primeira linha de interpretação, que é a mais comum hoje. “Filhos de Deus” no Antigo Testamento não eram os homens descendentes de Sete, mas os anjos. E o termo “filho” ou “filhos” dos homens nunca foi usado para descrever uma geração ímpia, mas era em primeiro lugar um termo genérico descrevendo toda a raça humana ou, em alguns casos, a um homem justo em especial – o que também torna bastante improvável que as “filhas dos homens” de Gênesis 6:1 tenha sido as descendentes de Caim.

Mas o anacronismo está longe de ser o único problema da Linha 1. Os defensores desta corrente também são flagrados no ponto 6 dos problemas exegéticos destacados no capítulo anterior: a ausência de sentido. Para os intérpretes da Linha 1, este pecado que culminou no dilúvio na verdade se resume ao fato de que os descendentes de Sete começaram a se unir em casamento com as descendentes de Caim. Há vários problemas de sentido com isso.

Primeiro, porque o argumento parte do pressuposto de que toda a geração de Sete foi justa, e que toda a geração de Caim foi ímpia. Mas a Bíblia não diz nada disso. O que ela diz é que Sete foi justo e Caim foi ímpio, mas não que toda a descendência deles foi justa ou ímpia. Isso seria o mesmo que dizer que todos os descendentes de Nero até hoje são todos ímpios, ou que todos os descendentes de Moisés até hoje são todos justos. Isso é evidentemente falso.

Em segundo lugar, é necessário observar que este foi o ponto culminante para Deus enviar o dilúvio logo em seguida (v.7). Logo após o relato de Gênesis 6:1-4, é dito que “o Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal” (Gn.6:5). E quando o dilúvio finalmente veio, é nos dito que apenas Noé e sua família restavam de justos sobre a face da terra. Então o cenário bíblico é totalmente oposto à Linha 1, que infere que “filhos de Deus” são a descendência justa de Sete, e que “filhas dos homens” são a descendência ímpia de Caim. Ao contrário: ambas as descendências, tanto de Sete como de Caim, já haviam mergulhado na iniquidade.

Em terceiro lugar, não faz sentido que Deus puna o ser humano pelo simples fato de que a descendência de Sete tenha se juntado por meio de casamentos com a descendência de Caim, porque em toda a Bíblia não há um único lugar onde Deus tenha proibido que tal coisa ocorresse. Há lugares onde Deus proíbe que israelitas se casem com mulheres não-israelitas (Ne.13:25-27), e onde Deus proíbe que crentes se casem com descrentes (2Co.6:14-18), mas nenhum lugar onde a descendência de Sete tenha sido proibida de se juntar com a de Caim. Mais uma vez, os advogados da Linha 1 se metem em eisegese, presumindo o que nem de longe está na Bíblia.

Em quarto lugar, a Linha 1 também não tem sentido à luz do contexto imediato, que parece claramente traçar uma ligação entre dois acontecimentos. O primeiro é este, onde os “filhos de Deus” possuíram as “filhas dos homens”, e o segundo está logo no verso 4, que diz que os filhos dessa junção entre os filhos de Deus e os filhos dos homens eram “os heróis do passado, os homens famosos” (v.4). Isso simplesmente não tem sentido nenhum caso tudo o que tenha ocorrido tenha sido relação sexual normal entre homens e mulheres, mas tem todo o sentido caso de fato tenha sido anjos caídos que “possuíram” aquelas mulheres, gerando filhos geneticamente modificados, os quais, por essa mesma razão, se tornaram mais fortes e poderosos que os demais, e viraram “heróis”, “lendas” da época.

Alguns estudiosos chegam inclusive a afirmar que o mito de Hércules (filho da relação entre um “deus” e uma mulher), bem como outros mitos semelhantes, provém em grande parte destes “heróis” de Gênesis 6:4, cujas histórias foram preservadas pela tradição oral e transmitidas adiante de boca em boca, embora obviamente alteradas para mais ou para menos com o passar do tempo, visto que tradições orais tendem a corromper em alguma medida o conteúdo original de uma mensagem. De qualquer forma, estes heróis do passado deixaram de existir com a chegada do dilúvio, e a ligação entre eles e o episódio de Gênesis 6:1-4 tem muito mais sentido e conexão com a Linha 2 do que com a Linha 1, que deixa o acontecimento sem explicação.

Quando analisamos o contexto geral, também vemos ampla base Escriturística para o fato de terem sido anjos. Judas faz uma referência a isso quando diz:

"E aos anjos que não conservaram suas posições de autoridade mas abandonaram sua própria morada, ele os tem guardado em trevas, presos com correntes eternas para o juízo do grande Dia" (Judas 1:6)

Embora os intérpretes da Linha 1 entendam este texto não como uma referência aos “filhos de Deus” de Gênesis 6:1, mas sim como uma referência aos anjos que anteriormente caíram na rebelião de Satanás (vulgarmente conhecido como “Lúcifer”), o fato é que estes anjos descritos no texto de Judas “abandonaram a própria morada”, dando a entender uma ação deliberada, enquanto os anjos que caíram na rebelião de Satanás não abandonaram por conta própria, mas foram expulsos do Céu, após perderem a batalha contra Miguel e seus anjos (Ap.12:7-8). Portanto, a menção nos leva a crer que se trata do episódio de Gênesis 6:1-4, onde os anjos decidiram “abandonar sua própria morada” ao verem que “as filhas dos homens eram formosas”, e não à rebelião original de Satanás e seus anjos.

Outra evidência no texto de Judas 1:6 que nos leva a crer que ele fazia referência aos anjos caídos de Gênesis 6:1-4 é que ele diz que estes anjos estão agora “presos com correntes eternas”, aguardando o juízo do grande dia. Este lugar é o mesmo identificado como “tártaro” (2Pe.2:4) ou “abismo” (Lc.8:31; Ap.9:1), para onde os demônios em Lucas 8:31 não queriam ser levados, e rogaram a Jesus para que ele lhes mandasse aos porcos. O Apocalipse nos diz que no futuro este abismo será aberto, para o momento no qual estes demônios serão libertos temporariamente e atuarão junto aos demais no contexto da grande tribulação (Ap.9:1-6).

Agora observe a descrição que Paulo faz dos demônios em geral (i.e, os que foram expulsos do Céu na rebelião de Satanás). Ele não diz que os demônios em geral estão presos, mas soltos. Eles estão “nos ares”, ou “nas regiões celestiais”, conforme outras traduções:

"Pois a nossa luta não é contra pessoas, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais" (Efésios 6:12)

É por isso que em outra ocasião Paulo chama Satanás de “o príncipe das potestades do ar (Ef.2:2). Pedro é ainda mais enfático em sua descrição, deixando perfeitamente claro que Satanás não está preso, mas solto, inclusive andando em nosso redor, procurando a quem possa tragar:

“Sejam sóbrios e vigiem. O diabo, o inimigo de vocês, anda ao redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar” (1ª Pedro 5:8)

Perceba o quão evidente é o contraste entre os anjos que caíram na rebelião de Satanás e aqueles a quem Judas faz referência em Judas 6. Os que caíram originalmente foram expulsos, mas os que ele faz menção abandonaram deliberadamente sua própria morada. Os que caíram originalmente estão soltos, mas os que ele faz menção estão presos. Quando comparamos com o texto de Gênesis 6:1-4, que fala dos “filhos de Deus”, vemos exatamente o mesmo cenário descrito por Judas, o que nos leva a crer que o texto de fato não está falando absolutamente nada dos “descendentes de Sete”!

Por fim, vamos ao ponto 9, que é a análise da história. O relato mais antigo preservado sobre o episódio descrito em Gênesis 6:1-4 vem do Livro de Enoque, o qual descreve o evento desta maneira:

"E aconteceu depois que os filhos dos homens se multiplicaram naqueles dias, nasceram-lhe filhas, elegantes e belas. E quando os anjos, os filhos dos céus, viram-nas, enamoraram-se delas, dizendo uns para os outros: Vinde, selecionemos para nós mesmos esposas da progênie dos homens, e geremos filhos"[2]

Curiosamente, este mesmo livro era muito conhecido por Judas, que o citou de forma direta em sua epístola (Jd.1:14-15). É só mais tarde que Flávio Josefo, já em pleno século I da era cristã, propõe a interpretação de que o relato diz respeito à descendência de Sete, e não aos anjos[3]. Isso é bastante fácil de explicar. Como o fato de anjos terem tido relações sexuais com mulheres parece algo bastante forte aos olhos humanos, e até difícil de aceitar, autores posteriores tentaram reinterpretar o verso, para suavizar a mensagem – ainda que para isso tenham corrompido a exegese. Ironicamente, é justamente pelo fato de o acontecimento ter sido tão absurdo e monstruoso que foi a gota d’água para Deus ter enviado o dilúvio e destruído todo o mundo da época (Gn.6:1-7)!

Assim como naquele tempo, ainda hoje há muitos teólogos que preferem suavizar a mensagem enfática de Gênesis 6:1-4, em especial porque pensam que os anjos não podem dar filhos, uma vez que são seres espirituais. Isso é verdade. Em sua condição celestial, os anjos são puramente espíritos. No entanto, eles ignoram o fato de que sempre quando a Bíblia menciona um anjo vindo a terraeste anjo se materializa, tomando forma totalmente humana. É por isso que os habitantes de Sodoma e Gomorra queriam ter relações sexuais com os anjos em forma humana (Gn.19:5), e que os anjos que conversaram com Abraão chegaram até a comer com ele (Gn.18:8). E foi nesta condição humana materializada que ocorreu o pecado, e não na condição espiritual celeste, a qual eles já haviam abandonado. Não há, portanto, qualquer conflito entre um fato e outro, e nenhuma necessidade de suavizar a mensagem original, a qual é perfeitamente compatível com a Linha 2.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (www.lucasbanzoli.com)


- Meus livros:

- Veja uma lista completa de livros meus clicando aqui.

- Acesse o meu canal no YouTube clicando aqui.


- Não deixe de acessar meus outros sites:

LucasBanzoli.Com (Um compêndio de todos os meus artigos já escritos)
Apologia Cristã (Artigos de apologética cristã sobre doutrina e moral)
Ateísmo Refutado (Evidências da existência de Deus e da veracidade da Bíblia)
Heresias Católicas (Artigos sobre o Catolicismo Romano)
Desvendando a Lenda (Artigos sobre a Imortalidade da Alma)
Estudando Escatologia (Estudos sobre o Apocalipse)



[1] Nota-se que a NVI, por exemplo, decidiu traduzir a expressão “filhos de Deus”, em Jó 1:6, como “anjos”, indo direto ao significado da expressão (embora tenha deixado a questão em aberto em Gênesis 6:1).
[2] Apócrifo de Enoque, c. 7, 1-2.
[3] História das Antiguidades, Livro I, 2:10.

30 de agosto de 2015

Princípios básicos para uma boa exegese


_________________________________________________________________

Este capítulo faz parte da obra: “Exegese de Textos Difíceis da Bíblia”, ainda em construção.
_________________________________________________________________


Neste capítulo introdutório, mencionarei de forma breve alguns dos principais recursos exegéticos que podem (e devem) ser aplicados pelo intérprete das Escrituras, sendo eles: (a) análise do contexto; (b) análise da linguagem; (c) análise de normatividade; (d) análise de anacronismo; (e) análise de eisegese; (f) análise do sentido; (g) análise do fundo cultural; (h) análise do original grego e hebraico; (i) análise da história. 


Análise do Contexto

A tarefa mais elementar para todo e qualquer intérprete de qualquer coisa que seja é sempre, a todo instante, analisar um texto dentro de seu devido contexto, tanto o imediato, quanto o geral. O contexto imediato refere-se ao texto em sua unidade, geralmente estabelecido nos versos anteriores e posteriores, e o contexto geral refere-se à obra como um todo, o que neste caso se aplica ao conteúdo da Bíblia de forma geral. Esta pode parecer uma tarefa bastante simples (e é), mas mesmo assim é impressionante como as pessoas conseguem falhar pelo básico.

Recentemente, estive conversando com alguém que não cria na ressurreição da carne, mas dizia que na eternidade viveremos em forma de “espírito”. O texto em que ele se fundamentava era aquele que dizia que nós seremos “como os anjos” (Mc.12:25), que, de fato, são espíritos. A conclusão parece boa, se não fosse por um problema: o contexto não diz nada disso. Em vez de o contexto estabelecer que seremos como os anjos no sentido de natureza, ele mostra que seremos como os anjos no sentido de não se casar. Vejamos o texto dentro de seu contexto maior:

“Depois os saduceus, que dizem que não há ressurreição, aproximaram-se dele com a seguinte questão: ‘Mestre, Moisés nos deixou escrito que, se o irmão de um homem morrer e deixar mulher sem filhos, este deverá casar-se com a viúva e ter filhos para seu irmão. Havia sete irmãos. O primeiro casou-se e morreu sem deixar filhos. O segundo casou-se com a viúva, mas também morreu sem deixar filhos. O mesmo aconteceu com o terceiro. Nenhum dos sete deixou filhos. Finalmente, morreu também a mulher. Na ressurreição, de quem ela será esposa, visto que os sete foram casados com ela?’ Jesus respondeu: ‘Vocês estão enganados! Pois não conhecem as Escrituras nem o poder de Deus! Quando os mortos ressuscitam, não se casam nem são dados em casamento, mas são como os anjos nos céus’” (Marcos 12:18-25)

Os saduceus não criam em ressurreição dos mortos para a vida eterna, e, então, quiserem colocar Jesus em apuros, com um exemplo hipotético onde uma mulher se casa sete vezes (ok, eles exageraram um pouco, exceto se estivessem pensando na Gretchen!). Dependendo da resposta de Jesus, eles alegariam que seria injusto se na ressurreição ela fosse esposa de um dos sete, e não dos outros seis. O que está em jogo aqui é a questão do casamento. Então Jesus responde que, ao ressuscitarmos, não seremos dados em casamento, porque seremos como os anjos. Em que sentido, portanto, que seremos como os anjos? Não no sentido de natureza do ser, mas no sentido da ausência de casamento.

Em outras palavras, nós seremos na ressurreição “como os anjos” porque não nos casaremos (da mesma forma que os anjos não se casam). Jesus não estava falando nada de “natureza” aqui. Comparando analogicamente, seria como se eu dissesse que “na ressurreição, nós seremos como os pássaros, porque vamos voar”[1]. Se eu dissesse isso, será que alguém chegaria ao ponto de pensar que eu estaria ensinando que teremos a natureza de um pássaro? É óbvio que não. Qualquer pessoa sensata concluiria apenas que seremos “como os pássaros” no sentido de “voar” apenas. Da mesma forma, quando Jesus diz que na ressurreição nós seremos como os anjos porque não seremos dados em casamento, ele de modo algum estava falando de ter a mesma natureza de um anjo, mas sim sobre ter aquela mesma característica específica que os anjos têm – neste caso, de não se casar.

E quanto ao contexto geral das Escrituras? A Bíblia confirma a ressurreição da carne em Atos 17:32-33, ocasião na qual Paulo ensina a ressurreição aos gregos e é zombado por eles. Os gregos não criam em ressurreição da carne, mas eles criam fortemente em uma alma ou espírito imortal. Se Paulo estava meramente ensinando que na eternidade seremos “espíritos”, eles de modo algum zombariam dele por causa de um ensino que eles mesmos aceitavam. Mas o que de fato ocorreu foi que eles ouviram Paulo atentamente por muito tempo, até que...

Quando ouviram sobre a ressurreição dos mortos, alguns deles zombaram, e outros disseram: ‘A esse respeito nós o ouviremos outra vez’. Com isso, Paulo retirou-se do meio deles” (Atos 17:32-33)

É lógico que a crença de Paulo era na ressurreição da carne – a mesma que era tão desprezada e zombada no mundo grego da época. Ele também disse que cria na mesma ressurreição que os fariseus criam (At.23:6-10), e os fariseus criam na ressurreição da carne. Jesus disse que “todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão” (Jo.5:28), Daniel disse que “multidões que dormem no pó da terra despertarão” (Dn.12:2), Paulo disse que Deus “dará vida a seus corpos mortais” (Rm.8:11), Jó disse que “depois de consumida a minha pele, contudo ainda em minha carne verei a Deus” (Jó 19:26), e o próprio Jesus ressurreto disse que ele não era um espírito sem corpo, mas tinha carne e osso (Lc.24:39).

Portanto, à luz do contexto imediato e geral, fica claro que a interpretação estava equivocada. 

Análise da Linguagem

Outro erro comum na exegese, mas desta vez mais frequente, é aqueles que não conseguem diferenciar a natureza da linguagem de um texto, e que tomam todos como se fossem literais, ou todos como se fossem alegóricos. Pior ainda são aqueles que acham que porque uma passagem é figurada ou alegórica, então todas as outras devem ser figuradas ou alegóricas também, e que não existe mais “regra de hermenêutica”, mas apenas achismos. Este argumento é bastante usado por ativistas gays, que acham que se há textos que os cristãos interpretam de forma não-literal na Bíblia, então todas as passagens que condenam o homossexualismo devem ser tomadas figurativamente também.

Mas este recurso não é usado somente pela militância gay, mas também por pastores e às vezes até por “exegetas” mais inexperientes. Certa vez eu estava debatendo com um pastor sobre o tema da imortalidade da alma, citando vários textos que diziam que os mortos não sabem de nada (Ec.9:5), não tem conhecimento de coisa alguma (Ec.9:10), não podem louvar a Deus (Is.38:18), não se lembram do Senhor (Sl.6:5), que na morte os pensamentos perecem (Sl.146:4), que homens e animais possuem o mesmo espírito-ruach (Ec.3:19-20), que nem Davi subiu ao Céu (At.2:34), que sem ressurreição não haveria vida póstuma (1Co.15:32), que a recompensa só ocorre na ressurreição (Lc.14:14), que a entrada no Reino só se dá depois da segunda vinda de Cristo (Mt.25:34) e que só depois disso entraremos em nossas moradas celestiais (Jo.14:2-3).

O pastor rebatia os textos citando dois casos: os meios de uma parábola (em Lucas 16:19-31) e uma descrição apocalíptica onde umas “almas” soltam gritos de vingança em pleno Paraíso, aglutinadas debaixo de um altar, clamando contra seus inimigos (Ap.6:9-11). Eu observei que essas descrições eram figuradas ou alegóricas, e expliquei por que. Mas ele insistia que se esses textos eram alegóricos, então todos aqueles outros que eu citei também deveriam ser. Para ele, era “tudo ou nada”. Ou os meus textos eram literais e os dele também (e assim não sairíamos do zero a zero), ou era tudo alegórico (e assim não sairíamos do mesmo jeito!).

A diferença fundamental entre um caso e outro é que os textos citados por mim são todos de livros históricos ou de epístolas doutrinárias. Do outro lado, os textos citados por ele eram de uma parábola e de um texto apocalíptico, e qualquer pessoa com um mínimo de aprendizado em exegese sabe que meios de parábolas e de natureza apocalíptica não devem ser tomados ao pé da letra, por razões óbvias. É a própria natureza da parábola e do Apocalipse que refuta a tese de que eles sejam tomados literalmente. Assim como ninguém usa a parábola de 2º Reis 14:9 ou de Juízes 9:8-15 para inferir que árvores falam (embora elas falem no contexto da parábola), ninguém deveria extrair doutrinas dos meios da parábola de Lucas 16:19-31, exceto sua lição central ou moral, a qual não tem nada a ver com imortalidade ou mortalidade da alma[2].

Da mesma forma, a natureza do Apocalipse infere que as verdades ali expostas não estão na “superfície” (linguagem literal), mas por “debaixo” dela (i.e, aquilo que é simbolizado por detrás). É assim que entendemos textos como esses:

(1) Cristo no Céu em forma de cordeiro ensanguentado (Ap.5:6).

(2) Criaturas dentro do mar falando e louvando a Deus (Ap.5:13).

(3) Várias estrelas caindo sobre a terra (Ap.6:13)[3].

(4) “Almas” que gritam por vingança debaixo de um altar no Céu (Ap.6:9-11).

(5) Cavalos com cabeças de leão (Ap.9:17).

(6) Cavalos que soltavam de sua boca fogo e enxofre (Ap.9:17).

(7) Gafanhotos com coroa de ouro e rosto humano, cabelos como de mulher e dentes como de leão (Ap.9:7-8).

(8) Um dragão perseguindo uma mulher grávida no deserto (Ap.12:13).

(9) A mulher grávida no deserto tem asas e voa (Ap.12:14).

(10) A terra abre a boca engolindo um rio que um dragão soltou com a sua boca (Ap.12:15-16).

(11) Os trovões falam (Ap.10:3).

(12) O altar fala (Ap.16:7).

(13) Jesus tem sete chifres e sete olhos (Ap.5:6).

(14) Duas oliveiras e dois candelabros soltam fogo devorador de suas bocas (Ap.11:4-5).

Por outro lado, embora os livros históricos e epístolas apostólicas por vezes tenham algo de alegórico ou figurado, não há nada no contexto específico dos textos supracitados por mim que exija isso. Ao contrário da natureza de uma parábola ou de um livro apocalíptico, elas apresentam fundamentalmente uma natureza literal. Em outras palavras, enquanto em parábolas e no Apocalipse a linguagem-padrão empregada é alegórica e só deve ser entendida literalmente caso haja algo ali que indique claramente o contrário, nos livros históricos ou nas cartas é o inverso: a linguagem-padrão é de natureza literal, exceto se o contexto indicar claramente o inverso. Mas quem não faz diferença entre uma coisa e outra, e coloca tudo em um mesmo “saco de farinha”, naturalmente irá encontrar enormes dificuldades pela frente em sua hermenêutica deturpada[4].

O bom exegeta também deve tomar cuidado com hebraísmos, que são forças de expressão comuns entre os hebreus, presentes nas páginas do Antigo Testamento. Essas expressões não devem ser tomadas literalmente. Há alguns anos certo pastor disse que a Terra é quadrada (entre outras sandices), usando como argumento os textos que falam dos “quatro cantos da terra” (Is.11:12)[5]. O hebraísmo era tão evidente que Ezequiel fala dos “quatro cantos da terra de Israel” (Ez.7:2), e ele certamente não pensava que Israel fosse um território quadrado! Até em nosso idioma temos forças de expressão semelhantes, quando dizemos, por exemplo, que “o sol nasceu” ou que “o sol se pôs”, embora saibamos perfeitamente que não é o sol que está em movimento.

Estes hebraísmos são bastante comuns em números. Os números sete e doze, principalmente, tinham um significado bastante especial para o povo judeu. Estes números se encontram amplamente na Bíblia, do Antigo ao Novo Testamento. Quando Jesus respondeu que devemos perdoar “setenta vezes sete” (Mt.18:22), ele não estava dizendo que depois de perdoarmos 490 vezes poderíamos reter o perdão, mas sim que devemos perdoar sempre. Em nosso idioma também costumamos usar expressões semelhantes, como “oito ou oitenta”, ou aplicar ao número dez, mil ou um milhão para um certo número indefinido mas bastante grande, como, por exemplo, se eu dissesse que “eu já te falei isso um milhão de vezes”. É importante tomar cuidado para não literalizar os hebraísmos, mas tentar identificar o que eles querem dizer.

Igualmente importante é saber quando um texto está apresentando uma hipérbole, que também não deve ser interpretada ao pé da letra. Uma hipérbole é quando se aumenta alguma coisa propositalmente, para passar um efeito maior. Os dez espias disseram que “as cidades de Canaã são grandes e fortificadas até aos céus” (Dt.1:28), embora obviamente o sentido era que os muros eram bastante grandes, mas não tão grandes quanto a descrição hiperbólica faz supor. É neste sentido que o salmista diz que “todas as noites faço nadar o meu leito, de minhas lágrimas o alago” (Sl.6:6), e que Paulo afirma que toda criatura que havia debaixo do céu já havia ouvido o evangelho em sua época (Cl.1:23).

Por fim, é importante também não tomar textos poéticos ao pé da letra, precisamente por serem poéticos. Em poesia, é bastante comum o emprego de figuras de linguagem. Tome como exemplo o verso 9 de Isaías 14, que se analisado isoladamente pode transmitir uma falsa ideia de linguagem literal:

“Nas profundezas o Sheol está todo agitado para recebê-lo quando chegar. Por sua causa ele desperta os espíritos dos mortos, todos os governantes da terra. Ele os faz levantar-se dos seus tronos, todos os reis dos povos” (Isaías 14:9)

O que dizem os versos anteriores e posteriores neste caso?

(1) O verso anterior diz que os pinheiros e os cedros do Líbano (árvores) iriam se alegrar e falar: “Agora que você foi derrubado, nenhum lenhador vem derrubar-nos!” (v.8).

(2) Os reis da terra não poderiam estar literalmente no Sheol, pois o texto diz que eles se “levantariam de seus tronos” (v.9), algo que só acontece enquanto o rei ainda vive.

(3) O verso 11 diz que “sua soberba foi lançada na sepultura, junto com o som das suas liras; sua cama é de larvas, sua coberta, de vermes”.

(4) O verso 12 em diante passa a dizer que ele “caiu dos céus” (v.12), que foi “atirado à terra” (v.12), que tentava subir ao céu e colocar seu trono acima das estrelas de Deus (v.13) e que subiria “mais alto que as mais altas nuvens” (v.14).

Diante disso, o mais sensato é tomar o verso 9 literalmente? Certamente não! Trata-se de uma linguagem caracteristicamente poética, cujo teor da mensagem deve ser entendido através de figuras de linguagem.


Análise da Normatividade

Outro ponto onde muita gente falha é em desconsiderar a questão da normatividade. Certamente, tudo aquilo que a Bíblia diz é verdade, mas nem tudo aquilo que ela descreve com veracidade é uma verdade. Vamos supor que você tenha presenciado o seu irmão mentir para a sua mãe, dizendo que vai sair para estudar literatura clássica na biblioteca do colégio, quando na verdade ele vai ao Itaquerão para ver o São Paulo ganhar (facilmente) do Corinthians. Depois de muito relutar, você escreve um bilhete para a sua mãe avisando isso. Então sua mãe decide brigar com você, dizendo que você mentiu, porque você descreveu uma mentira. Você se defende dizendo que apenas relatou a verdade dos fatos, de que seu irmão mentiu, mas ela insiste em dizer que o mentiroso é você, porque você relatou uma mentira, então “você mente”.

Como você reagiria neste caso?

Pois é exatamente isso o que alguns picaretas, geralmente atrelados ao neo-ateísmo, fazem com a Bíblia. Em seu livro “Deus é um Delírio”, ao qual escrevi uma refutação de 1200 páginas[6], Richard Dawkins coloca “na conta de Deus” os pecados de Abraão e de Moisés, o erro de Jefté que sacrificou sua filha, a loucura de Ló em oferecer suas filhas aos sodomitas, a insanidade das filhas de Ló em se deitarem com o pai, o estupro da concubina do levita e sua indiferença ao ato, e assim por diante. O que é que isso tudo prova? Que a Bíblia aprova estas atitudes erradas, mesmo quando cometidas pelos maiores personagens bíblicos? É claro que não. Isso só prova a fidelidade da Bíblia no registro dos acontecimentos, sem embelezamento, a verdade nua e crua.

Isso tudo é descrição, e não prescrição. Talvez Dawkins se assuste em ouvir isso: Abraão era humano como nós. Talvez ele se espante ainda mais em ouvir isso: ele era pecador. E provavelmente ele deveria mesmo é se apavorar com o fato de que os escritores bíblicos, ao invés de fantasiarem uma história e mostrarem os personagens bíblicos perfeitinhos, eram fieis aos acontecimentos e retratavam até mesmo os mais horríveis pecados dos mais notáveis homens. Dawkins, no entanto, mistura prescrição e descrição como se fosse uma coisa só, coloca tudo na conta de Deus e, é claro, culpa os cristãos por tudo isso.

Mas não são só os ateus que confundem descrição com prescrição. Até alguns “crentes” fazem o mesmo. Há não muito tempo surgiu um certo “irmão Rubens”, que gravou um vídeo chamado “A Bíblia Mente”[7], onde o seu único argumento para dizer que a Bíblia é mentirosa é que ela descreve algumas mentiras ditas por certos personagens bíblicos, como Raabe (Js.2:4-6). O illuminático[8] concluiu então que a Bíblia está mentindo, que é uma farsa, uma fraude, uma mentira.

Mas a confusão entre descrição e prescrição vai mais além. Os pregadores da prosperidade incorrem neste equívoco repetidamente, porque os versos em que eles se apropriam para ensinar a teologia da prosperidade são sempre descritivos, e nunca prescritivos. O exemplo mais usual e popular é o de Abraão, que foi, certamente, um homem bastante rico, e era temente a Deus. Mas então, de repente, surge a “conclusão”: nós também devemos ser ricos, se somos tementes a Deus!

Claro que não é preciso ter um raciocínio muito apurado para perceber a falácia nesta afirmação. O texto não está dizendo que “Abraão era rico, e por isso todos os servos de Deus de todas as eras devem ser tão ricos quanto ele” (o que seria uma prescrição). Não. O texto só diz que “Abraão era rico”, e ponto. Pegar a descrição sobre Abraão e aplicá-la normativamente seria como alguém dizer que todos os servos de Deus devem ser miseráveis e esperar a providência divina somente pelas migalhas trazidas por corvos, porque o profeta Elias sobreviveu deste jeito por algum tempo (1Rs.17:1-6). Mas é claro que eles preferem o exemplo de Abraão do que o de Elias ou de qualquer um dos apóstolos, ou mesmo de Jesus!

Há descrições bíblicas de ricos e pobres, mas se pegarmos os textos prescritivos, que são tomados normativamente para a nossa era, nós só vemos isso:

“Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (1ª Coríntios 15:19)

“Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a vida por minha causa, este a salvará” (Lucas 9:24)

“Vós, ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que sobre vós virão. Vossas riquezas apodreceram e vossas roupas foram comidas pela traça. Vosso ouro e vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem dará testemunho contra vós e devorará vossas carnes como fogo. Entesourastes nos últimos dias!” (Tiago 5:1-3)

“Ao anjo da igreja em Laodicéia escreva: Estas são as palavras do Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o soberano da criação de Deus. Conheço as suas obras, sei que você não é frio nem quente. Melhor seria que você fosse frio ou quente! Assim, porque você é morno, nem frio nem quente, estou a ponto de vomitá-lo da minha boca. Você diz: Estou rico, adquiri riquezas e não preciso de nada. Não reconhece, porém, que é miserável, digno de compaixão, pobre, cego e que está nu. Dou-lhe este aconselho: Compre de mim ouro refinado no fogo e você se tornará rico; compre roupas brancas e vista-se para cobrir a sua vergonhosa nudez; e compre colírio para ungir os seus olhos e poder enxergar” (Apocalipse 3:14-18)

“E outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mateus 19:24)

“Ouvi, meus caríssimos irmãos: porventura não escolheu Deus os pobres deste mundo para que fossem ricos na fé e herdeiros do Reino prometido por Deus aos que o amam?” (Tiago 2:5)

“Vendei o que possuís e dai esmolas; fazei para vós bolsas que não se gastam, um tesouro inesgotável nos céus, aonde não chega o ladrão e a traça não o destrói. Pois onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração” (Lucas 12:33-34)

“Olhando para os seus discípulos, ele disse: Bem-aventurados vocês os pobres, pois a vocês pertence o Reino de Deus. Bem-aventurados vocês, que agora têm fome, pois serão satisfeitos. Bem-aventurados vocês, que agora choram, pois haverão de rir (...)Mas ai de vocês, os ricos, pois já receberam sua consolação. Ai de vocês, que agora têm fartura, porque passarão fome. Ai de vocês, que agora riem, pois haverão de se lamentar e chorar” (Lucas 6:20-21; 24-25)

“Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e as traças corroem, onde os ladrões furtam e roubam. Mas acumulem para vocês tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração” (Mateus 6:19-21)

“Se alguém ensina falsas doutrinas e não concorda com a sã doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino que é segundo a piedade, é orgulhoso e nada entende. Esse tal mostra um interesse doentio por controvérsias e contendas acerca de palavras, que resultam em inveja, brigas, difamações, suspeitas malignas e atritos constantes entre pessoas que têm a mente corrompida e que são privados da verdade, os quais pensam que a piedade é fonte de lucro. De fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos para este mundo e dele nada podemos levar; por isso, tendo o que comer e com que vestir-nos, estejamos com isso satisfeitos. Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram a si mesmas com muitos sofrimentos” (1ª Timóteo 6:3-10)

“Conservem-se livres do amor ao dinheiro e contentem-se com o que vocês têm, porque Deus mesmo disse: ‘Nunca o deixarei, nunca o abandonarei’” (Hebreus 13:5)

“E dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me” (Lucas 9:23)

“Então Jesus disse aos discípulos: ‘Digo-lhes a verdade: Dificilmente um rico entrará no Reino dos céus’” (Mateus 19:23)

O que os pregadores da prosperidade fazem com estes versos normativos? Nada. Eles simplesmente fingem que não existem, e nunca os usam em suas pregações. Essa é, aliás, uma das principais características de uma heresia: toma como normativo os textos descritivos, e ignora os textos prescritivos. Fazendo isso, eles invertem a exegese de ponta-cabeça e dão base para toda e qualquer falsa doutrina.


Análise de Anacronismo

O anacronismo “consiste em utilizar os conceitos e ideias de uma época para analisar os fatos de outro tempo”[9]. Essa falácia é bastante utilizada por quem tenta provar algo pela Bíblia baseando-se em um termo ou palavra em especial, a qual é entendida não da forma como originalmente era aceita, mas da forma como é aceita hoje, ou da maneira com a qual é entendida pelo argumentador. Católicos e espíritas, em geral, costumam recorrer muito a erros de anacronismo. Particularmente, considero tarefa difícil debater teologia com um espírita, não porque algo na doutrina deles seja minimamente compatível com as Escrituras, mas porque eles lêem a Bíblia com uma lente kardecista, e para refutar qualquer detalhe é necessária sempre uma análise bem mais profunda dos termos originais.

A palavra mais deturpada por eles é, certamente, o “espírito”. Quando a Bíblia fala de “espírito maligno” (At.19:15), sabemos que ela não está se referindo a um fantasminha que saiu do corpo de algum ser humano e que está agora em um “mundo dos espíritos”, mas sim a demônios, que biblicamente são anjos caídos. Mas tente dizer isso a um espírita. Você primeiro precisa explicar toda a teologia sistemática em torno de demonologia, para só depois continuar a argumentação. Chega a ser cansativo.

Os católicos costumam incorrer no mesmo equívoco anacrônico, só que com outras duas palavras: Igreja e tradição. Embora seja bem conhecido que o sentido bíblico primário de “Igreja” (ekklesia) seja da reunião espiritual entre todos os cristãos do mundo, e não uma referência a uma placa de igreja ou instituição religiosa em particular, os católicos lêem a Bíblia com as lentes de Roma, e, consequentemente, subtendem sempre que a palavra “Igreja” no Novo Testamento se refira à “Igreja Católica Apostólica Romana” (que sequer existia na época!).

A outra palavra distorcida pelos apologistas católicos é a “tradição”. Na Bíblia, essa palavra nunca tem o sentido de “doutrina fora da Escritura”, mas se referia aos costumes e práticas que não tinham valor doutrinário normativo[10]. Os Pais da Igreja também falavam muito sobre a “tradição”, mas, novamente, nunca no sentido de “doutrina extraída fora da Bíblia”. Em meu livro “Em Defesa da Sola Scriptura”, eu provo com mais de 400 citações dos Pais da Igreja que a tradição não tinha nada a ver com doutrinas pregadas apenas oralmente e não fundamentadas em lugar nenhum da Bíblia, mas que dizia respeito a doutrinas ensinadas na Escritura, ou a costumes, ou a interpretações bíblicas. Nunca, em parte alguma das milhares de obras patrísticas examinadas, tinha o sentido católico-romano do termo[11].

O interessante é que este mesmo argumento também é usado pelos católicos ortodoxos orientais, separados de Roma desde 1054 d.C. Eles também usam a palavrinha mágica “tradição” como a “prova” de sua doutrina, mas, neste caso, não fazem referência à tradição romana, mas à tradição ortodoxa, é claro. O detalhe é que ambos defendem sua própria tradição usando a mesma fonte como referência, e falhando pelo mesmo erro de anacronismo. Romanos e ortodoxos tem tradições divergentes e distorcem o sentido do mesmo termo em cima de textos isolados dos Pais da Igreja, cada qual para provar seu próprio ponto de vista.

Até mesmo os muçulmanos que tentam interpretar a Bíblia falham pelo anacronismo. Como eles creem que o “consolador” é Maomé, eles trazem este conceito para dentro de sua interpretação da Bíblia, resultando em enormes equívocos. Sabemos que o Consolador, de fato, é o Espírito Santo (Jo.15:26), não homem algum.

Não tenho tempo aqui para analisar e refutar cada erro de anacronismo de cada igreja, religião ou seita, mas essas observações iniciais servem para deixar o leitor em estado de alerta para não incorrer no mesmo equívoco. Ao invés de sair por aí proclamando vitória por causa de uma palavra controvertida, consulte um léxico de grego, faça uma pesquisa sobre o contexto de cada uma das ocorrências do termo na Bíblia, e, se for possível, faça uma pesquisa histórica sobre como essa mesma palavra era entendida historicamente naquela própria época. Isso evitará cometer eisegese baseado em um entendimento moderno e distorcido de um termo original gramaticalmente idêntico, mas de significado oposto ao que se pretende.


Análise de Eisegese

O maior recurso de todos os que “torcem as Escrituras” (2Pe.3:16) é conhecido como eisegese. Enquanto a exegese busca extrair o significado de um texto mediante legítimos métodos de interpretação, a eisegese consiste em injetar em um texto alguma coisa que não está ali, mas que o intérprete quer que esteja. O prof. Antônio Renato Gusso, em sua obra sobre hermenêutica, conta que certa vez um rapaz que ia pregar na igreja dele já tinha todo o esboço do culto preparado, mas só faltava uma coisa: os textos bíblicos! Então, este rapaz foi consultá-lo para que ele lhe dissesse quais textos bíblicos poderiam ser usados para fundamentar sua pregação![12]

Claramente, o pregador estava praticando eisegese, ao invés de exegese. Em vez de ler as Escrituras com a devida atenção e extrair dela o conteúdo da pregação, o autor já tinha uma ideia pronta na cabeça e só queria usar versos isolados da Bíblia para dar base a esta convicção. Alguns ícones da teologia da libertação defendem explicitamente esse método. Para eles, é errado extrair da Bíblia o seu significado. O correto é injetar nela aquilo que ajuda na “luta de classes” em favor dos “oprimidos”. É desta forma que alguns deles consideram Abraão um “opressor”, assim como todos os ricos descritos na Bíblia (ainda que a mesma descreva Abraão de uma forma totalmente oposta).

Não é nada raro encontrarmos exemplos práticos de eisegese. Eles existem por todos os lados, o tempo todo, sendo incansavelmente praticado por aqueles que deixam de crer no que a Bíblia diz, para fazer a Bíblia dizer o que eles creem. Quem costuma praticar eisegese não se preocupa com o significado de um texto para seus receptores originais, mas tenta perverter este significado para torná-lo mais próximo de seus próprios conceitos teológicos. Desde a época de Pedro já é dito que “os ignorantes e instáveis torcem as Escrituras, para a própria destruição deles” (2Pe.3:16).

O maior ícone atual da eisegese no Brasil é, sem dúvida, Paulo Leitão, um comediante papista que tenta dar “fundamento bíblico” às doutrinas romanas, sempre nos presenteando com muitas gargalhadas. Leitão é um profissional nato da eisegese, ao ponto de às vezes parecer quase acreditar naquilo que diz. Ele tem vídeos onde defende o purgatório com dezenas de provas “bíblicas”, e até mesmo a intercessão dos santos desde o livro de Jó(!) até o Apocalipse. É um verdadeiro fenômeno da eisegese. Eu já escrevi algumas refutações ao mesmo[13], mas parei depois de suspeitar que ele seja um evangélico se fingindo de “católico” infiltrado no lado de lá para abaixar o nível da apologética romanista.

Um dos textos citados por Leitão na defesa da intercessão dos “santos” falecidos foi este:

“Nisto ouvi como que um imenso coro, sonoro como o ruído de grandes águas e como o ribombar de possantes trovões, que cantava: Aleluia! Eis que reina o Senhor, nosso Deus, o Dominador! Alegremo-nos, exultemos e demos-lhe glória, porque se aproximam as núpcias do Cordeiro. Sua Esposa está preparada” (Apocalipse 19:6-7)

Não me pergunte onde foi que ele viu intercessão de gente morta aí. Eu também não sei. Mas ele viu[14]. E com um pouco de esforço e bastante imaginação, qualquer um pode ver qualquer coisa na Bíblia. Só precisa de muita criatividade e de desonestidade maior ainda.

Enquanto os católicos mais honestos admitem que não há base bíblica para muitas de suas doutrinas e por isso se apoiam na tradição contra a Sola Scriptura, Leitão e outros fenômenos modernos da eisegese estão lutando uma luta em vão para dar fundamento eisegético a doutrinas que claramente só eles que veem nos textos que citam. Um dos “melhores” argumentos desta apologética papista moderna é o do silêncio: se a Bíblia declara que Jesus disse muitas coisas que não foram escritas (Jo.20:30; 21:25), conclui-se imediatamente que estas coisas eram justamente todas as doutrinas católicas que não constam em parte nenhuma daquilo que foi escrito!

Ao invés de agir com prudência e cautela sobre o que não foi dito, ficando com aquilo que foi dito, eles descem o pé no acelerador e pisam fundo no campo das suposições, hipóteses, devaneios e delírios. Não é à toa que os mórmons, os espíritas, os muçulmanos e praticamente todas as seitas apostam na mesma cartada: entre essas “muitas outras coisas que não foram escritas” os mórmons presumem que está a ida de Jesus à América, os espíritas concluem que está a reencarnação, os muçulmanos acham que estão profecias sobre Maomé, e assim por diante. O eisegeta vai sempre se basear mais naquilo que nunca foi dito, mas que ele quer que tenha sido dito, do que naquilo que realmente foi dito – principalmente se o que foi dito é um golpe de morte em suas próprias invenções eisegéticas.


Análise do Sentido

Outro meio fácil de identificar eisegese é quando a conclusão tirada dos textos não tem lógica alguma. É verdade que parte dos erros de interpretação parecem “lógicos” (do ponto de vista de que, mesmo sendo errados, ainda parecem superficialmente convincentes), mas muitas outras vezes a conclusão “salta” das premissas e deixa as coisas um tanto ilógicas e incoerentes. Aqueles que defendem a tese de que o corpo da ressurreição é meramente um corpo “espiritual” no sentido de “não-físico” não veem qualquer distinção real entre isso e o estado intermediário, que, para eles, é onde os mortos estão agora em forma de “espíritos”. Mas se os mortos já são espíritos, pra que “ressuscitar” em forma “espiritual”? Simplesmente não tem sentido.

Qual é a lógica ou coerência em um espírito (algo imaterial) ser revestido de um “corpo espiritual” (algo imaterial) é um mistério irracional que nunca foi explicado, porque de fato não tem nenhuma explicação racional. Algo que já é imaterial não precisa ser revestido ou transformado em algo também imaterial, e isso sequer é possível. Se existe uma ressurreição, ela precisa ser física, ou o próprio sentido da mesma se perde. Se há realmente uma ressurreição que acontece quando Jesus voltar, é obviamente necessário que ocorra alguma mudança fundamental no panorama, e não que tudo continue o mesmo. Mas se já estamos no Céu como “espíritos” antes da ressurreição, e se continuaremos no Céu como “espíritos” depois da ressurreição, então essa tal “ressurreição” é simplesmente uma redefinição sutil do termo para significar “nada”.

Ou então tente ler o seguinte texto bíblico sob a ótica determinista (doutrina que afirma que tudo o que acontece foi decretado ou determinado por Deus desde a eternidade):

“Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram (Mateus 23:37)

O que o texto diz? Que Jesus quis reunir Israel, mas eles não quiserame como consequencia disso eles foram julgados. Se não há livre-arbítrio, então quem na verdade não quis que os israelitas se reunissem com Deus foi o próprio Deus, que já havia determinado isso, sem que o homem pudesse fazer nada a respeito para contrariá-lo. Se foi Deus que determinou infalível e irremediavelmente que os israelitas rejeitariam, então Lemke está certo quando diz que “o lamento de Jesus deveria teria sido sobre a dureza do coração de Deus”[15].

O determinista típico vai responder que Deus quis determinar que os israelitas não quisessem, e que mesmo assim demonstrou bipolaridade ao dizer que na verdade não queria não, e que os culpados eram os israelitas por não terem se oposto a um decreto do qual era totalmente impossível se opor. Por mais ilógico e irracional que isso seja, ainda assim há gente que irá preferir crer que tudo foi determinado por Deus e que este mesmo Deus reclama por alguém ter rejeitado um convite dele, quando foi da determinação do próprio Deus que eles rejeitassem[16].

Quando analisamos o sentido de um argumento, há coisas que se encaixam, e coisas que não se encaixam de jeito nenhum. Geralmente, os que não conseguem encaixar sua teoria tentam encaixá-la de qualquer jeito, mesmo que para isso tenham que fazer aquilo que chamamos de “malabarismo hermenêutico”, que é quando alguém faz de tudo para tentar dar sentido a algo que definitivamente não tem sentido nenhum. Na dúvida, é melhor ficar com aquilo que tem sentido, do que com aquela interpretação que parece completamente forçada e antinatural.


Análise do Fundo Cultural

Há textos cuja interpretação depende do fundo histórico onde ele se situa. Isso não significa, no entanto, que devamos relativizar todo o evangelho para se adaptar à cultura mundana ou secular de cada povo. Ao contrário, o Cristianismo é muito melhor descrito como uma “contracultura”, que está a todo tempo em uma guerra espiritual contra as forças do mundo. É por isso que João disse que “o mundo jaz no maligno” (1Jo.5:19), e que Tiago declarou que “quem quer ser amigo do mundo se torna inimigo de Deus” (Tg.4:4). Não se trata especificamente de adaptar o evangelho à cultura secular, mas sim de identificar onde está a essência do problema, e a sua respectiva aplicação.

Em outras palavras, em toda proibição bíblica há um princípio eterno que vale para todas as eras, mas a aplicação deste princípio varia em relação à época e cultura. Recentemente uma “igreja” decidiu fazer “cultos” onde todo mundo pode ficar pelado, desde o padre até os irmãos da igreja[17]. Eles queriam viver como Adão e Eva antes da Queda. O padre prega completamente nu no púlpito. Logicamente, qualquer pessoa minimamente sensata sabe que isso é abominável, e de fato chega a ser uma ofensa ou blasfêmia contra Deus.

Mas pense agora se esta mesma igreja estivesse em uma zona indígena, e que todos os membros dali fossem índios, que sempre viveram com pouca ou nenhuma roupa sem qualquer conotação sexual ou malícia. Você consideraria isso uma ofensa ou blasfêmia contra Deus? Você iria vestir os índios, que sempre viveram daquele jeito sem nunca terem entendido isso de forma maldosa ou erótica? Eu não. E todos os missionários que já tentaram vestir os índios falharam miseravelmente, tanto na tentativa de vesti-los quanto na tentativa de evangelizá-los. Naquela cultura, a nudez pública não é um mal.

Note que o princípio de santidade e pureza é eterno, mas a aplicação deste princípio é variável. Em nossa cultura, ficar pelado ou seminu em público é algo extremamente vulgar e imoral. Na cultura deles, isso é algo natural sem nenhuma malícia ou maldade, que não afeta a santidade e pureza. Não é o princípio que muda, e sim a aplicação deste princípio. Como este é um assunto longo e polêmico, deixarei para comentar mais sobre isso no capítulo 9 deste livro, que abordará temas como o uso de tatuagens, de véu, de jóias e de cabelo comprido.


Análise do original grego ou hebraico

Alguns textos polêmicos não são polêmicos apenas pela interpretação que se dá a eles, mas também pela própria tradução. Embora problemas com traduções conflitantes seja algo que ocorra em uma minoria de vezes, não é nem um pouco incomum. E quando isso sucede, é necessário que você saiba hebraico e grego, ou que, pelo menos, tenha em mãos um bom léxico de hebraico e grego (ou, melhor ainda, vários bons léxicos!). Na verdade, mesmo para quem sabe tudo de grego, ainda assim a sua própria sapiência não é o suficiente em um trabalho acadêmico ou em um debate formal. Não basta ele dizer o que uma palavra significa, ele tem que provar que ela significa isso mesmo. No fim das contas, tanto aquele que sabe quanto aquele que não sabe os idiomas originais terão que recorrer aos dicionários de grego e hebraico.

Com o avanço da internet, ter acesso a este conhecimento ficou bem mais simples. A Concordância de Strong é livremente acessível para todos (disponível na nota de rodapé deste livro)[18], e há sites que disponibilizam diversas ferramentas que ajudam muito neste sentido. O site “Bible Hub”[19] é uma pérola riquíssima para quem quiser ter acesso online a diversos materiais extremamente relevantes na parte de tradução e de comentários bíblicos diversos. Ainda assim, o mais recomendável é que o estudioso pelo menos tente fazer um curso de introdução ao grego bíblico. Hoje em dia, nem dinheiro é desculpa: há vários cursos online e gratuitos de grego, inclusive em vídeos no YouTube.

Há alguns casos que são mais complicados, onde o problema não reside tanto na tradução em si, mas na divergência de manuscritos. Trata-se de problemas abordados pela Crítica Textual, que é uma área complexa que foi melhor abordada no capítulo 7 do meu livro “As Provas da Existência de Deus”[20], e que não vem ao caso discutir novamente. O fato é que certos textos aparecem em uns manuscritos antigos e não aparecem em outros, ou então aparecem em alguns de uma forma, e em outros de uma forma bastante diferente. Embora seja muito difícil para qualquer pessoa ter acesso a todos os mais de cinco mil manuscritos gregos antigos, todos os três códices mais importantes (Vaticano[21], Sinaítico[22] e Alexandrino[23]) estão disponíveis online, o que facilita bastante a tarefa do exegeta.


Análise da História

Por fim, uma análise histórica é sempre imprescindível para quem almeja chegar mais perto do significado pretendido pelo autor. Embora somente a Bíblia seja normativa, inspirada e inerrante, ler a literatura judaica (no caso de textos do Antigo Testamento) e a patrística (no caso de textos do Novo Testamento) é sempre importante, porque ajuda a nos levar mais próximo daquilo que os receptores da mensagem originalmente entenderam. É óbvio que, em casos onde a Bíblia é clara sobre uma questão, nada que algum rabino ou Pai da Igreja afirmar irá mudar isso. Mas há textos dúbios e ambíguos, que permitem razoavelmente mais de uma única interpretação, e nestes casos o que a história afirma a respeito é ainda mais valioso.

A literatura útil do Antigo Testamento é mais escassa do que a do Novo, mas podemos destacar o livro de Enoque, o livro da Assunção de Moisés, os Odes de Salomão, o Salmo 151, 1º e 2º Esdras, 3º e 4º Macabeus, a Oração de Manassés, o Livro dos Jubileus, 4º Baruque, o Apocalipse de Elias, o Livro de Jasar, além dos sete apócrifos acrescentados pelos católicos em suas Bíblias (1º e 2º Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Tobias, Judite e Baruque, além das adições aos livros de Daniel e de Ester). Todos estes livros judaicos não são canônicos e contém certos erros teológicos, mas ainda assim tem sua relevância histórica e devocional, foram estimados até certo ponto pelos judeus e em alguns casos podem nos ajudar a desvendar a interpretação de alguns textos que são para nós ambíguos ou críticos.

No caso do Novo Testamento, o conteúdo relevante que temos vem da patrística, que são os escritos dos Pais da Igreja, os cristãos que sucederam os apóstolos depois da morte deles. Neste quesito, deve se dar credibilidade maior para aqueles que conviveram mais de perto com os apóstolos e que escreveram em data mais antiga, como Clemente de Roma (35-97), Inácio de Antioquia (35-107), Policarpo (69-155), Papias (70-155), Hermas (70-155) e a Didaquê (60-90). No segundo século aparecem escritores como Aristides (75-134), Barnabé (80-150), Justino (100-165), Teófilo (120-186), Taciano (120-180), Melito (120-180), Irineu (130-202) Orígenes (185-253), Clemente Alexandrino (150-257) e Atenágoras (133-190).

Os escritores a partir do terceiro século têm menos ligação com os apóstolos, mas ainda assim não devem ser de todo ignorados. Em todo caso, o mesmo critério que vale com os livros judaicos também se aplica aos patrísticos: tais obras foram escritas por homens falíveis que poderiam errar e até mesmo ter algum escrito seu posteriormente adulterado por copista, mas isso não tira a importância histórica que eles desfrutam, quanto maior for a sua proximidade com os apóstolos. Como já foi mencionado, uma doutrina crida unanimemente pelos judeus do Antigo Testamento ou pelos primeiros Pais da Igreja é quase impossível de ser falsa, pois exigiria que a mensagem original tivesse sido corrompida em um espaço de tempo muitíssimo curto.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (www.lucasbanzoli.com)


- Meus livros:

- Veja uma lista completa de livros meus clicando aqui.

- Acesse o meu canal no YouTube clicando aqui.


- Não deixe de acessar meus outros sites:

LucasBanzoli.Com (Um compêndio de todos os meus artigos já escritos)
Apologia Cristã (Artigos de apologética cristã sobre doutrina e moral)
Ateísmo Refutado (Evidências da existência de Deus e da veracidade da Bíblia)
Heresias Católicas (Artigos sobre o Catolicismo Romano)
Desvendando a Lenda (Artigos sobre a Imortalidade da Alma)
Estudando Escatologia (Estudos sobre o Apocalipse)



[1] Tome isso apenas como uma concessão para o bem do argumento (obviamente eu não creio que nós literalmente voaremos na eternidade!).
[3] Sabe-se que o tamanho das estrelas é maior do que o do nosso planeta e se caíssem estrelas sobre a terra esta acabaria no mesmo instante e o Apocalipse teria fim.
[4] Mais informações sobre como diferenciar o literal e o alegórico na Bíblia você encontra em: http://ocristianismoemfoco.blogspot.com.br/2015/07/como-diferenciar-o-literal-do-alegorico.html
[8] Só os fortes entenderão.
[10] Alon Franco fez um ótimo artigo a este respeito, disponível em:http://agrandecidade.com/2015/08/14/paulo-e-as-tradicoes-do-catolicismo/
[12] Antônio Renato Gusso. Como entender a Bíblia. Curitiba: A. D. Santos, 1998, p. 81.
[14] Ele disse isso no minuto 24:07 deste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=f1YRu4daESo
[15] Lemke, "A Biblical and Theological Critique of Irresistible Grace”, in Whosoever Will: A Biblical-Theological Critique of Five-Point Calvinism, ed. David L. Allen and Steve W. Lemke (Nashville, TN: Broadman & Holman, 2010), p. 120.
[16] Leia mais sobre o determinismo em: http://apologiacrista.com/determinismo-calvinista
[17] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SlgylxDGB24. Qualquer ânsia de vômito ao assistir ao vídeo não é culpa minha.