21 de julho de 2015

A reencarnação resolve o problema do mal?


A doutrina da reencarnação tem sido persistentemente utilizada por certos grupos religiosos como sendo a mais sublime e elevada explicação para o mal moral no mundo, como se ela fosse a única tese que pudesse justificar moralmente a existência do sofrimento. Não é raro os vermos se vangloriando da crença na reencarnação e zombando da crença cristã na ressurreição, como se a crença deles fosse mais lógica e coerente do que a nossa. É inegável que, a uma primeira vista, a reencarnação parece mesmo ser uma explicação razoável para a existência de mendigos na rua, de pessoas morrendo de fome na África, de doenças em todas as partes, das guerras, e assim por diante. Basta dizer que a pessoa que sofre está pagando pelos pecados de uma vida passada, e que, por isso, este sofrimento é “justo”. E, se é justo, não há injustiça, e consequentemente o problema do mal se vai. É uma explicação fácil, que aparentemente “resolve” o dilema.

Supostamente.

Ao analisarmos mais de perto, percebemos que a explicação do mal pela via da reencarnação não apenas não resolve o problema, mas o aumenta. Ela é semelhante a alguém que está endividado com outra pessoa, e para quitar essa dívida pede um empréstimo no banco. Então ele quita a dívida com a pessoa a quem devia, mas agora tem uma dívida maior para com outro. A reencarnação supera os dilemas tradicionais, mas no lugar deles coloca outros maiores, que aumentam o problema ao invés de curá-lo.

Por exemplo, a reencarnação coloca a culpa de quem sofre na conta de quem sofre. Em outras palavras, se alguém nasceu cego, surdo ou mudo, o culpado é ele mesmo, por ter sido supostamente “mau” em sua existência passada. A mesma coisa se aplica nas demais áreas da vida. Se alguém está sofrendo muito aqui, a culpa recai em primeiro lugar nos ombros da própria pessoa que sofre. Dito em termos simples, não basta alguém ter nascido cego: ele também é acusado de ter sido o culpado por esse sofrimento! Ora, para alguém que está sofrendo, não há nada que seja pior do que colocar um outro peso de culpa nas costas da pessoa. Diga a alguém depressivo (que nada fez para merecer isso) que na verdade ele está assim porque ele foi um monstro na vida passada. Ele vai ficar mais depressivo ainda, e dificilmente irá se recuperar.

Isso leva consequentemente a um conformismo: “se eu estou sofrendo, é porque eu tenho que sofrer” (por causa do carma); “se eu estou sofrendo, é porque eu mereço sofrer; ou então: “se eu estou sofrendo, é porque eu sou o culpado”. Isso também leva a atitudes absurdas contra aqueles que já nasceram com alguma deficiência, pois nos levaria a crer logicamente que se a pessoa já nasceu com a deficiência é porque ela foi muito pecadora na vida passada (já que tudo gira em torno de causa e efeito). Era assim que os fariseus da época de Jesus tratavam um moço que nasceu cego:

“Você nasceu cheio de pecado; como tem a ousadia de nos ensinar?” (João 9:34)

Mas quando Jesus foi perguntado se aquele homem havia nascido cego por culpa dele ou dos seus pais, ele negou ambas as hipóteses:

“Seus discípulos lhe perguntaram: ‘Mestre, quem pecou: este homem ou seus pais, para que ele nascesse cego?’ Disse Jesus: ‘Nem ele nem seus pais pecaram, mas isto aconteceu para que a obra de Deus se manifestasse na vida dele” (João 9:2-3)

Aqui vemos o mais claro contraste entre a teologia de Jesus e a teologia reencarnacionista. Enquanto para estes a culpa de alguém que já nasceu defeituoso recai sobre a própria pessoa deficiente, a quem se julga antecipadamente ter sido má em sua “vida passada”, para Jesus os que sofrem não são necessariamente os culpados pelo seu próprio sofrimento. Assim sendo, os milhares que nasceram com alguma imperfeição não são alvos de julgamentos pré-concebidos ou acusações gratuitas, mas de amor e compaixão.

Além disso, a reação natural que se tem ao presumir que a reencarnação existe é que não é bom ajudarmos aqueles que mais sofrem. A razão para isso é simples: se ele sofre, é porque está “pagando os pecados” da vida anterior. E se ele está pagando um preço, quem somos nós para impedir isso? Se alguém faz o mal e é condenado a 30 anos de prisão, e eu vou lá e solto ele da prisão muito antes de se completar os 30 anos, eu estarei praticando um crime, porque é justo e natural que as pessoas paguem as consequencias dos seus próprios atos. Para os reencarnacionistas, os que sofrem hoje estão pagando um preço. Por que, então, impedir que este preço seja pago?

A ajuda ao próximo, nesta visão, é uma grosseira intromissão no carma alheio, e significa impedir que uma pessoa pague o preço que ela merece e tem que pagar. Ao ajudarmos uma pessoa necessitada, estaríamos interferindo em um carma e impedindo que uma pessoa má da outra vida pague por seus maus atos nesta vida. Isso não apenas nos leva a olhar com maus olhos para os que sofrem hoje (e a exaltar os mais ricos e favorecidos, por contraste), mas também nos leva a ver pouco sentido em ajudar alguém que foi o culpado por estar na situação em que se encontra.

A visão cristã, em contrapartida, milita no sentido contrário: se alguém passa necessidades nesta vida, isso não tem nada a ver com uma vida passada. A pessoa necessitada não está pagando pecados, nem “sofrendo por merecer”. Semelhantemente, os bem sucedidos nesta vida não são bem sucedidos por terem sido “bons” em uma vida passada, e de fato podem não ter feito nada de bom para merecer isso. A visão cristã nos coloca em uma posição onde o pobre não é o vilão nem o rico é o mocinho, mas onde todos são iguais e merecem os mesmos direitos. A visão reencarnacionista, por contraste, leva a um desprezo pela vida do mais pobre e a uma exaltação indevida do mais rico.

Em países onde a doutrina da reencarnação predomina e onde quase 100% do povo crê na lei do carma, é precisamente isso o que se vê. Na Índia, país que adota o hinduísmo e onde todo mundo crê na reencarnação, a sociedade é estabelecida por castas, onde é praticamente impossível alguém de cima cair de posição, ou alguém de baixo subir. Em outras palavras, os que estão no degrau mais inferior na escala social não tem nenhuma esperança ou expectativa na vida. No sistema de castas, se você nasceu pobre morrerá pobre, se nasceu rico morrerá rico, se nasceu servo morrerá servo, se nasceu senhor morrerá senhor. O carma deles é esse, e eles têm que pagar o preço – para o bem ou para o mal. Isso ajuda a criar desigualdade social e preconceito.

Dinesh D’Souza, que nasceu na Índia e ali foi educado por boa parte da vida, fala com propriedade sobre o assunto, e explica:

“Quando o Cristianismo chegou à Índia, logo você observa que um grande número de indianos correu para o Cristianismo. Por quê? Conforme eu fui examinando esse assunto, descobri que no sistema de castas da Índia você tem quatro castas com os párias por baixo de todos. Se você nasceu pária, você está acabado, não há para onde ir, você não consegue se safar. Muitas pessoas da classe pária foram muito atraídas para o Cristianismo, pois eles o viam como afirmação da ideia de igualdade espiritual entre as pessoas. Significou que havia algo a dizer a eles: ‘Você não é um nada, você não é um cão, você é um ser humano e isso conta muito’. A maior parte do mundo não tem isso. Nós não o tínhamos na civilização ocidental tampouco. O Cristianismo o trouxe. Ele importou um pouco disso do Judaísmo, mas o Judaísmo era para a tribo: Deus instruiu seu povo escolhido. O Cristianismo toma a ideia e a universaliza. Se você olhar para os direitos divulgados pela ONU, a Declaração dos Direitos Humanos, notará algo muito interessante: eles não são universais. Praticamente todos esses direitos são uma herança específica do Cristianismo. É bom que eles sejam universalizados, como o Cristianismo queria desde o início, mas eles não eram direitos compartilhados e reconhecidos em todas as culturas e práticas, sejam elas religiosas ou não, nas outras culturas”[1]

E Dinesh exemplifica isso na prática citando o seguinte exemplo:

“Se amanhã houvesse uma grande falta de alimentos em Ruanda ou no Haiti, essa seria a reação: todos os países do ocidente agiriam. Haveriam manifestações de solidariedade, Médicos Sem Fronteiras, Cruz Vermelha, igrejas enviando alimentos, trabalho voluntário, etc. E há vários países ricos no mundo oriental (China, Índia, os países islâmicos cheios de petróleo), mas qual seria a reação deles? Eles não dariam a mínima. Eles seguiriam suas vidas. Por quê? Porque esta ideia de obrigação para com o próximo é um conceito do ocidente. Quando criança, na Índia, aprendi um provérbio: ‘As lágrimas dos que não conhecemos são apenas água’. Este pode parecer um jeito insensível de se pensar, mas na verdade não é. É o jeito que todos pensam. A ideia aceita por todo o mundo é a de que temos obrigações com nossa família. É por isso que trabalhamos e provemos. Para quem? Não para os outros, mas para a nossa família. Suas obrigações são para com sua família, depois para seus parentes, seus vizinhos, seus amigos, sua ‘tribo’, e é isso. Então, se alguém que não é seu conhecido aparece com um problema, você deseja que ele fique bem, mas não é seu problema. Portanto, a ideia de compaixão é exclusiva do ocidente [cristão]”[2]

Com isso nós não estamos dizendo que todos os que creem em reencarnação não sejam boas pessoas ou que tratem com indiferença os menos favorecidos. Estamos simplesmente dizendo que esta é a consequencia lógica que se extrai da doutrina da reencarnação, caso ela seja verdadeira, e que isso se faz visível de forma mais marcante precisamente naqueles países que majoritariamente adotam a crença na reencarnação e fazem dela o leme que guia todo o país.

Mas o pior problema filosófico para a crença na reencarnação é justamente a origem do mal. Para Alan Kardec e para os reencarnacionistas em geral, há um princípio de evolução que rege as novas encarnações. Em outras palavras, significa que você sempre vai estar necessariamente “evoluindo”, sendo uma pessoa melhor na próxima encarnação do que você é hoje. Mas se isso é assim, então o inverso também é verdadeiro: você foi uma pessoa menos boa (ou pior) em sua encarnação anterior, do que você é hoje. E este é um princípio fixo: não importa o quão ruim você seja nesta vida, você foi pior na vida passada. Até os maiores monstros e crápulas da história da humanidade (pessoas como Hitler e Nero) eram menos ruins do que na encarnação anterior deles, e assim sucessivamente.

Então pense da seguinte maneira: você já não é uma pessoa pra lá de perfeita nesta presente encarnação, mas era pior do que isso na encarnação passada. Mas o que você era de ruim na encarnação passada também não era tão ruim assim quanto na encarnação anterior a aquela. Mas mesmo sendo tão ruim nesta outra encarnação, isso não era nada em comparado com a encarnação anterior a ela, e assim sucessivamente, numa regressão enorme de encarnações (cada vez piores) até chegarmos à primeira encarnação.

Essa primeira encarnação, por conseguinte, deve necessariamente consistir no pior monstro moral e aberração que é possível que um ser humano seja, em um nível praticamente inconcebível. Se Hitler era esse monstro que foi, ele foi pior na encarnação anterior, e pior na anterior, e pior na anterior, até chegar à primeira de todas as encarnações. Então você já deve ter em mente uma leve ideia de como é essa primeira encarnação. Mas ao chegarmos aqui, os reencarnacionistas se veem em um dilema crucial: já não há mais encarnações anteriores para justificar o mal!

Em outras palavras, se o mal presente na encarnação atual é justificado por aquilo que fomos na encarnação passada, o que justifica o mal que existia na primeira encarnação, quando não havia nenhuma outra antes dela? A coisa piora ainda mais quando vemos que, pela lógica reencarnacionista, o mal presente na primeira encarnação era muito maior e pior do que o mal presente nesta encarnação atual. Consequentemente, a necessidade e a urgência em se explicar o mal presente na primeira encarnação seria muito maior do que a necessidade de se explicar o mal presente nesta encarnação. Mas ao chegarmos à primeira encarnação, nem os reencarnacionistas teriam uma “encarnação anterior” para responsabilizar pelo mal!

Em outras palavras, os reencarnacionistas tentam explicar o mal complicando tudo, jogando cada vez mais para trás até chegar a um ponto completamente insustentável, onde não tem mais condição nenhuma de explicar o mal por seus próprios métodos. E o problema é muito maior, porque o mal que supostamente existia era maior, e ele não teria sido causado por encarnações passadas! Apelar para a reencarnação para resolver o problema do mal é somente adiar e postergar o problema, ate que ele vire uma verdadeira bola de neve, muito pior do que inicialmente era (sem a reencarnação). É “pagar a dívida” com uma dívida maior, e então com outra maior, e outra maior, até chegar um momento em que não tem como pagar mais nada, e está devendo muito mais do que estava no início. É por isso que a reencarnação simplesmente não é uma saída.

A situação complica ainda mais quando vemos que neste sistema reencarnacionista o problema original do mal recai sobre Deus, que teria sido o criador dos espíritos. Em outras palavras, Deus teria dado origem ao primeiro ciclo de encarnações, e, como vimos, a primeira encarnação era a encarnação de um ser essencialmente mau. Então a origem de todo o mal seria Deus, que deliberadamente teria decidido criar seres maus a princípio, para só depois irem evoluindo aos poucos até chegarem à perfeição. Por que razão um Deus onibenevolente teria criado originalmente seres essencialmente maus para perpetuar o sofrimento na terra por gerações e gerações, isso ninguém sabe. É um “mistério”.

A visão cristã, por contraste, apresenta uma criação originalmente criada para o bem. “E viu Deus que o que criou era bom” (Gn.1:31) é o que é nos dito ao final de cada criação divina. A humanidade, inclusive. Deus não criou um homem originalmente mau, mas foi o próprio homem que optou por ser mau, escolhendo o mau caminho por seu livre-arbítrio. Assim, a culpa do mal no mundo, numa perspectiva cristã, não recai sobre Deus – que criou um ser bom – mas sobre o homem, que escolheu pelo mal.

A solução para o problema do mal numa perspectiva cristã também difere da perspectiva reencarnacionista. Para os reencarnacionistas, obtemos a perfeição através de sucessivas e infindáveis encarnações, que parecem nunca ter fim. Em outras palavras, nos tornamos “salvadores” de nós mesmos, ao final de um cansativo ciclo de encarnações. Já para os cristãos, obtemos a perfeição através de Jesus, o homem perfeito, que pagou o preço em nosso lugar. Jesus, portanto, é nosso salvador perfeito, único e suficiente (At.4:12), através do qual recebemos “a redenção, a saber, o perdão dos pecados” (Cl.1:14). Por isso, a salvação não é para amanhã, mas “no tempo que se chama hoje” (Hb.3:13). Essa vida é a nossa única chance, e essa é mais uma razão para aproveitá-la ao máximo, dispondo todo o nosso coração para Deus.

O quadro abaixo sintetiza o que foi resumidamente aqui exposto:

VISÃO REENCARNACIONISTA
VISÃO CRISTÃ
A culpa de quem sofre é da própria pessoa que sofre
A culpa não é necessariamente de quem está sofrendo
Ajudar a quem mais precisa é interferir no carma
Ajudar a quem mais precisa é cumprir o evangelho
O problema do mal não é resolvido, mas postergado
O problema não é postergado, mas resolvido
Ao regredirmos à primeira encarnação, o ser humano era essencialmente mau
Na origem da criação, Deus fez seres bons
A culpa e origem do mal recaem sobre Deus
A culpa e origem do mal recaem sobre o homem
A solução para o problema são milhares e milhares de encarnações, perpetuando o mal por muitíssimo tempo
A solução para o problema é receber Jesus como salvador pessoal já nesta vida, e desfrutar de vida eterna já na próxima
Em conclusão, a doutrina da reencarnação não serve como uma resposta decente ou séria para o problema do mal, servindo mais para aumentar do que para eliminar os dilemas. Embora superficialmente pareça dar mais sentido e explique o porquê que pessoas justas sofram enquanto pessoas más prosperam, basta uma análise um pouco mais detalhada para perceber que ela, longe de explicar algo razoavelmente, termina multiplicando exponencialmente o problema, e sugerindo um caminho errado como solução.

• Para ler uma análise do problema do mal sob uma perspectiva cristã, clique aqui.

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)


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18 de julho de 2015

Comentários de João 12

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Este capítulo faz parte da obra: “O Novo Testamento Comentado”, de autoria de Lucas Banzoli e de livre divulgação.
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1 Veio, pois, Jesus seis dias antes da páscoa a Betânia, onde estava Lázaro, o que havia morrido, a quem ressuscitara dos mortos. 
2 Fizeram-lhe, pois, ali uma ceia, e Marta servia; e Lázaro era um dos que juntamente com ele estavam sentados [à mesa] . 
3 Tomando então Maria um arrátel de óleo perfumado de nardo puro, de muito preço, ungiu os pés de Jesus, e limpou os pés dele com seus cabelos; e encheu-se a casa do cheiro do óleo perfumado. 
4 Então disse Judas de Simão Iscariotes, um de seus discípulos, o que o trairia: 
5 Por que se não vendeu este óleo perfumado por trezentos dinheiros, e se deu aos pobres? 
6 E isto disse ele, não pelo cuidado que tivesse dos pobres; mas porque era ladrão, e tinha a bolsa, e trazia o que se lançava [nela] . 
7 Disse pois Jesus: Deixa-a; para o dia de meu sepultamento guardou isto. 
8 Porque aos pobres sempre os tendes convosco; porém a mim não me tendes sempre. 
9 Muita gente dos judeus soube pois, que ele estava ali; e vieram, não somente por causa de Jesus, mas também para verem a Lázaro, a quem ressuscitara dos mortos. 
10 E os chefes dos sacerdotes se aconselharam de também matarem a Lázaro, 
11 Porque muitos dos judeus iam por causa dele, e criam em Jesus. 
12 No dia seguinte, ouvindo uma grande multidão, que viera à festa, que Jesus vinha a Jerusalém, 
13 Tomaram ramos de plantas e lhe saíram ao encontro, e clamavam: Hosana! Bendito aquele que vem no nome do Senhor, o Rei de Israel! 
14 E Jesus achou um jumentinho, e sentou-se sobre ele, como está escrito: 
15 Não temas, ó filha de Sião; eis que teu Rei vem sentado sobre o filhote de uma jumenta. 
16 Porém seus discípulos não entenderam isto ao princípio; mas sendo Jesus já glorificado, então se lembraram que isto dele estava escrito, e [que] isto lhe fizeram. 
17 A multidão pois, que estava com ele, testemunhava, que a Lázaro chamara da sepultura, e o ressuscitara dos mortos. 
18 Pelo que também a multidão lhe saiu ao encontro, porque ouvira que fizera este sinal. 
19 Disseram pois os fariseus entre si: Vedes que nada aproveitais? Eis que o mundo vai após ele. 
20 E havia alguns gregos dos que haviam subido para adorarem na festa. 
21 Estes pois vieram a Filipe, que era de Betsaida de Galileia, e rogaram-lhe, dizendo: Senhor, queríamos ver a Jesus. 
22 Veio Filipe, e disse-o a André; e André então e Filipe o disseram a Jesus. 
23 Porém Jesus lhes respondeu, dizendo: Chegada é a hora em que o Filho do homem será glorificado. 
24 Em verdade, em verdade vos digo, se o grão de trigo, ao cair na terra, não morrer, ele fica só; porém se morrer, dá muito fruto. 
25 Quem ama sua vida a perderá; e quem neste mundo odeia sua vida, a guardará para a vida eterna. 
26 Se alguém me serve, siga-me; e onde eu estiver, ali estará também meu servo. E se alguém me servir, o Pai o honrará. 
27 Agora minha alma está perturbada; e que direi? Pai, salva-me desta hora; mas por isso vim a esta hora. 
28 Pai, glorifica teu Nome. Veio pois uma voz do céu, [que dizia] : E já [o] tenho glorificado, e outra vez [o] glorificarei. 
29 A multidão pois que ali estava, e [a] ouviu, dizia que havia sido trovão. Outros diziam: Algum anjo falou com ele. 
30 Respondeu Jesus e disse: Esta voz não veio por causa de mim, mas sim por causa de vós. 
31 Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo. 
32 E eu, quando for levantado da terra, trarei todos a mim. 
33 (E isto dizia, indicando de que morte [ele] morreria.) 
34 Respondeu-lhe a multidão: Temos ouvido da Lei que o Cristo permanece para sempre; e como tu dizes que convém que o Filho do homem seja levantado? Quem é este Filho do homem? 
35 Disse-lhes pois Jesus: Ainda por um pouco de tempo a luz está convosco; andai enquanto tendes luz, para que as trevas vos não apanhem. E quem anda em trevas não sabe para onde vai. 
36 Enquanto tendes luz, crede na luz, para que sejais filhos da luz. Estas coisas falou Jesus, e indo-se, escondeu-se deles. 
37 E ainda que perante eles tinha feito tantos sinais, não criam nele. 
38 Para que se cumprisse a palavra do profeta Isaías, que disse: Senhor, quem creu em nossa pregação? E a quem o braço do Senhor foi revelado? 
39 Por isso não podiam crer, porque outra vez Isaías disse: 
40 Os olhos lhes cegou, e o coração lhes endureceu; para não acontecer que vejam dos olhos, e entendam do coração, e se convertam, e eu os cure. 
41 Isto disse Isaías, quando viu sua glória, e falou dele. 
42 Contudo ainda até muitos dos chefes também creram nele; mas não o confessavam por causa dos fariseus; por não serem expulsos da sinagoga. 
43 Porque amavam mais a glória humana do que a glória de Deus. 
44 E exclamou Jesus, e disse: Quem crê em mim, não crê [somente] em mim, mas [também] naquele que me enviou. 
45 E quem vê a mim, vê a aquele que me enviou. 
46 Eu sou a luz que vim ao mundo, para que todo aquele que crê em mim, não permaneça em trevas. 
47 E se alguém ouvir minhas palavras, e não crer, eu não o julgo; porque não vim para julgar o mundo, mas sim para salvar o mundo. 
48 Quem me rejeitar e não receber minhas palavras, já tem quem o julgue: a palavra que eu tenho falado, essa o julgará no último dia. 
49 Porque eu não tenho falado de mim mesmo; porém o Pai que me enviou, ele me deu mandamento do que devo dizer, e do que devo falar. 
50 E sei que seu mandamento é vida eterna. Portanto o que eu falo, falo assim como o Pai tem me dito.



12.6 porque era ladrão. Embora Judas roubasse o que era ofertado, nem por isso o ministério terreno de Jesus como um todo estava corrompido. Judas era o único culpado. Da mesma forma, infelizmente nos dias de hoje há pastores e tesoureiros de igrejas que fazem o mesmo que Judas, e que tomam para si aquilo que foi dado de oferta, acumulando tesouros na terra ao invés de investir no avanço do Reino de Deus. Tais pessoas serão certamente julgadas por Deus e condenadas pelo crime cometido, porém não é certo dizer que todo o ministério da Igreja está contaminado por causa de uma ou outra pessoa que faz isso. Se há pastores ladrões, a solução não é apostatar da fé, mudar de religião ou virar ateu, mas simplesmente ser você mesmo um exemplo positivo em meio aos exemplos negativos; seja um trigo em meio ao joio, e deixe que Deus fará justiça sobre o joio.

12.8 os pobres sempre tendes convosco. Jesus não estava sendo contra a ajuda aos pobres nesta ocasião, mas apenas estabelecendo prioridades. Ele elogiou a oferta de uma moedinha da viúva pobre, e rejeitou as grandes ofertas dos ricos (Lc.21:4). Ele “sentia compaixão das multidões, porque estavam aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor” (Mt.9:36), e multiplicou-lhes os pães e peixes (Mc.6:41-44). Ele também pedia que se vendesse tudo e desse aos pobres (Lc.18:22-23), e tinha um fundo de onde tirava recursos para ajudá-los (Jo.13:29). Uma das marcas diferenciais do ministério de Jesus era que “aos pobres é anunciado o evangelho” (Mt.11:5), e até quando falava de salvação Jesus se colocava a favor dos “pequeninos” e menos favorecidos, quando disse que “o que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram” (Mt.25:40). O que estava em jogo nesta ocasião não era ignorar os pobres, mas colocar a si mesmo como prioridade absoluta. Em primeiro lugar vem “o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt.6:33), que ali estava na pessoa de Jesus, e em segundo lugar vem a ajuda social na terra. Primeiro está a salvação da alma, e só depois vem o bem estar do corpo. Há igrejas que caem nos dois extremos: ou elas quase não falam de salvação e se transformam em uma ONG sem objetivos maiores, ou só falam de salvação mas não ajudam os pobres nem com uma moedinha. A verdadeira Igreja do Deus vivo é aquela que prioriza a salvação eterna, mas não descuida da ajuda social.

12.13 e clamavam: Hosana! É possível que parte desta multidão estivesse envolvida poucos dias depois no episódio da crucificação de Jesus. Em geral, as multidões que acompanhavam Jesus não demonstravam firmeza de fé; elas estavam mais preocupadas em receber sua própria cura, milagre ou providência física do que qualquer outra coisa. Logo, bastava que Jesus contrariasse alguma de suas opiniões, e ela lhes virava as costas. Em João 6, as multidões seguiam Jesus porque este lhes havia multiplicado os pães e peixes (Jo.6:26), mas depois de breve tempo ela lhe deu as costas por não suportar a mensagem espiritual de Jesus (Jo.6:66).

12.20 alguns gregos. Os gregos eram a elite intelectual da época, o mais alto nível de retórica e filosofia, e agora estavam procurando Jesus, presumivelmente para levá-lo à Grécia e integrá-lo a esta elite intelectual, que é o que todo bom mestre de moral mais sonharia. No entanto, Jesus recusa este pedido (v.23), porque sua missão não era de ser apenas um “bom mestre de fé e moral”, nem tampouco era de ser mais reconhecido ou famoso entre os homens, mas era cumprir a vontade de Deus para a salvação do homem. Jesus não estava buscando a glória dos homens ou o reconhecimento deles, mas a glória de Deus e o reconhecimento do Pai, e preferiu seguir sua missão de morte numa cruz (que se cumpriria dentro de poucos dias) do que buscar um atalho mais fácil para a glória dos homens e sua própria fama.

12.24 se morrer, dá muito fruto. O princípio espiritual por detrás disso é que precisamos morrer para nós mesmos se quisermos dar fruto para o Reino. Quando sujeitamos a nossa vontade pessoal à vontade de Deus, é aí que Ele começa a fazer a obra em nossa vida, e a nos usar como instrumentos dEle.

12.25 quem ama a sua vida a perderá. V. nota em Lc.9:24.

12.28 veio pois uma voz do céu. V. nota em Jo.11:41.

12.29 dizia que havia sido trovão. Só os que tem o coração aberto para ouvir a voz de Deus é que estão suscetíveis a ouvi-lo. Aqueles que já fecharam seu próprio coração irão sempre tentar buscar outras “hipóteses” e “possibilidades” para deixar o sobrenatural de lado, mesmo que para isso seja necessário negar o óbvio.

12.30 por causa de vós. Em outras palavras, não era Jesus que precisava do sinal, mas o povo incrédulo.

12.31 agora será lançado fora o príncipe deste mundo. I.e, Satanás, a partir do momento da morte e ressurreição de Cristo, perderia o direito legal sobre a humanidade, conquistado por ele através do pecado de Adão.

12.32 trarei todos a mim. Não significa que todos serão salvos, mas que a salvação estará disponível e aberta para todos os que aceitarem Cristo como o salvador único e suficiente de suas vidas.

12.34 o Cristo permanece para sempre. Os judeus estavam confundindo as profecias do AT, pensando que o “permanecer para sempre” implicava em não morrer, quando, na verdade, implicava em ressuscitar para viver para sempre, uma vez que estava bem claro que o Messias haveria de morrer pelo povo (Is.53:8-9). Jesus explica que o Filho do homem teria que ser “levantado”, i.e, passar por uma ressurreição dentre os mortos.

12.37 não criam nele. Não porque Deus tivesse predestinado a incredulidade, o que seria realmente maldoso, mas porque aquelas próprias pessoas se recusaram a aceitar a oferta gratuita de salvação (v. nota em Rm.10:21). Deus, em sua presciência, já tinha conhecimento prévio disso e profetizou tal acontecimento através do profeta Isaías, o que teve seu cumprimento nesta ocasião (v.38).

12.43 amavam mais a glória humana do que a glória de Deus. Isso é muito mais comum do que se pensa. Ainda hoje há muitos que sabem a verdade, mas preferem suprimi-la ou omiti-la por medo daquilo que as pessoas pensariam dela caso ela dissesse abertamente a verdade. Querendo agradar os homens e temendo a desaprovação do grupo em que se encontram, acabam se tornando verdadeiros inimigos de Deus, para quem realmente devemos prestar contas (Tg.4:4; Rm.14:12). Deus quer que digamos a verdade; não o que os homens querem ouvir, mas o que eles precisam ouvir – ainda que isso custe caro para nós.

12.45 quem vê a mim, vê a aquele que me enviou. Não significa que o Pai e Jesus fossem a mesma pessoa (v. nota em Jo.11:41), o que é claramente refutado no verso anterior, que diz que o Pai enviou Jesus, e que quem crê nele não crê somente nele, mas também no Pai. O que Jesus estava dizendo é que vê-lo equivale a ver o Pai, no sentido de que ambos compartilham da mesma natureza divina. Ambos tinham a mesma mensagem e estavam em total concordância (v.49).

12.47 eu não o julgo. O propósito de Jesus em vir ao mundo não era o julgamento propriamente dito, mas a salvação daqueles que de outra forma estariam perdidos sem ele. O juízo e condenação não era o propósito da vinda de Cristo, mas uma mera consequencia do fato de alguns decidirem rejeitá-lo por sua própria vontade (v.48). Se você precisa ver um jogo de futebol mas não tem ingresso, e eu passar e lhe oferecer de graça um ingresso, e você não aceitar este ingresso e ficar de fora do jogo, não sou eu quem fiz com que você ficasse fora do jogo, mas você mesmo. Da mesma forma, Jesus apenas oferece salvação, e quem cai em condenação é o próprio homem ao escolher rejeitá-lo.

12.49 não tenho falado de mim mesmo. V. nota em Jo.16:13.

17 de julho de 2015

A Ética Cristã e o "Mal Menor"


Desde São Tomás de Aquino, o princípio do “mal menor” tem sido colocado em debate pelos teólogos das mais diferentes vertentes religiosas. Basicamente, sua prerrogativa era de que entre dois males inevitáveis, é preciso escolher o menor[1]. Na verdade, este assunto já era alvo de debates no campo da ética pelo menos desde Aristóteles, quando o mesmo disse:

"O mal menor, em relação a um mal maior, está situado na categoria de bem. Pois um mal menor é preferível a um mal maior. E aquilo que é preferível sempre é um bem, e quanto o mais preferível este seja maior bem é"[2]

O que Aristóteles estava querendo dizer não era que um mal menor era em realidade um bem objetivo em si mesmo, mas sim que, comparado à outra alternativa em questão (a qual era pior), ele era um “bem” relativo.

De que forma que o princípio do mal menor se aplica dentro da teologia cristã? Embora haja pessoas que neguem o próprio princípio em si, eu entendo que há bastante base lógica e bíblica para o mesmo. Em primeiro lugar, há algo inato no ser humano que o faz pensar que, de fato, um mal menor é preferível em relação a um mal maior – e isso independe totalmente de religião ou cosmovisões. Richard Dawkins, o ateu mais famoso do mundo, em seu livro “Deus, um Delírio”, citou um estudo de caso hipotético, onde diferentes pessoas, das mais diversas regiões e religiões, tiveram que opinar sobre se algo era certo ou errado nos determinados exemplos:

“São típicas dos dilemas morais de Hauser as variações sobre o tema do vagão ou bonde descontrolado que ameaça matar um grupo de pessoas. A história mais simples propõe que uma pessoa, Denise, está num centro de controle em condições de mandar o bonde para um desvio, salvando portanto a vida das cinco pessoas presas na linha principal. Infelizmente há um homem preso no desvio. Mas, como ele é apenas um, menos que as cinco pessoas presas na linha principal, a maioria das pessoas concorda que é moralmente permissível, se não obrigatório, que Denise mexa no controle e salve os cinco, matando o homem do desvio”[3]

O interessante é que dilemas morais como esse, que envolvem o mal menor, são cridos universalmente, até mesmo por tribos indígenas com pouco ou nenhum contato com a civilização externa:

“Numa incursão intrigante na antropologia, Hauser e seus colegas adaptaram seus experimentos morais aos kuna, uma pequena tribo da América Central que mantém pouco contato com os ocidentais e não possui religião formal. Os pesquisadores mudaram a experiência de pensamento do ‘vagão na linha de trem’ para equivalentes mais adequados, como crocodilos nadando na direção de canoas. Com as pequenas diferenças correspondentes, os kuna mostram os mesmos juízos morais que a maioria de nós”[4]

Isso no mínimo indica que o princípio do mal menor é uma verdade interiorizada no coração do homem de tal forma que negá-lo é como negar a própria intuição humana.

Em segundo lugar, há muitas evidências bíblicas de que o “mal menor” faz parte da ética cristã. Listarei aqui alguns exemplos, começando com o maior e mais primordial de todos: o sacrifício vicário de nosso Senhor Jesus Cristo. Havia um problema na humanidade, e este problema se chamava pecado. Se nada fosse feito, o destino comum e cruel para o qual toda a humanidade estaria fadada é a morte (Rm.6:23). Este seria o pior mal de todos, porque envolveria todos os seres humanos. Por outro lado, para a expiação dos pecados, havia uma solução: Jesus. No entanto, para que esta expiação fosse possível, era necessário sofrimento e morte de cruz – um mal tão grande que o próprio Senhor Jesus chegou a suar “gotas de sangue” (Lc.22:44) e a pedir ao Pai para que, se possível, aquele cálice fosse afastado dele (Lc.22:42). A situação envolvia, certamente, dois males. Mas entre todos morrerem (mal maior) ou um morrer por todos (mal menor), Deus optou pelo mal menor: Jesus morreu para que nós pudéssemos viver (1Jo.4:9).

A segunda evidência bíblica quanto ao mal menor envolve o caso do suicídio de Sansão. O suicídio, em si, certamente era um mal. Por outro lado, este era um mal menos ruim do que deixar todos os filisteus daquele lugar vivos, uma vez que os filisteus costumavam ser bastante imorais, inclusive se envolvendo no sacrifício de crianças, e estavam batalhando contra os israelitas na ocasião, colocando em risco a vida de milhares de pessoas inocentes. De alguma forma, Deus concordou com o pedido de Sansão, porque lhe atendeu a oração e lhe deu forças para que seu desejo fosse atendido. Ocorreu um mal menor, mas para evitar um pior.

A terceira evidência bíblica a este respeito é a marcante oração de Paulo, que desejava ser excluído de Cristo para poder salvar a outros:

“Digo a verdade em Cristo, não minto; minha consciência o confirma no Espírito Santo: tenho grande tristeza e constante angústia em meu coração. Pois eu até desejaria ser amaldiçoado e separado de Cristo por amor de meus irmãos, os de minha raça, o povo de Israel” (Romanos 9:1-4)

É claro que ser “amaldiçoado e separado de Cristo” é algo enormemente ruim. Um mal. Todavia, Paulo desejou isso honestamente, se com isso pudesse gerar um bem maior, que era a salvação de todos os israelitas. Na lógica de Paulo, o mal que seria a morte dele sem Cristo seria menor do que o mal que seria a morte de todos os israelitas sem Cristo, e por isso a primeira seria preferível à última. O princípio do “mal menor” aqui é inegável.

A quarta linha de evidência bíblica são as várias ocasiões onde Deus pune e castiga certa pessoa ou povo em função de um pecado. Os israelitas, por exemplo, foram punidos por Deus para o cativeiro na Assíria, assim como o Reino de Judá para o cativeiro babilônico, o que indiscutivelmente é um mal em si mesmo, ainda mais admitindo que eles fossem o povo escolhido de Deus. No entanto, esse mal foi necessário, uma vez que o oposto a ele (i.e, a liberdade irrestrita) se definiria como uma não-punição aos pecados, que geraria por sua vez pecados cada vez mais desenfreados cometidos por pessoas que ficariam sem qualquer tipo de punição. O mal menor, portanto, se aplica aqui para evitar um mal maior.

Em quinto lugar, a aparente passividade dos escritores neotestamentários na questão referente à escravidão também pode ser explicada a partir da perspectiva do mal menor. Sabemos que os primeiros cristãos eram contrários à forma de escravidão empregada pelo império romano, e Paulo foi bem enfático ao dizer aos escravos: “não se tornem escravos de homens” (1Co.7:23), disse que na vida em Cristo já não há diferença entre “escravo e livre” (Cl.3:11) e escreveu uma carta inteira intercedendo por um escravo (Filemom). Uma questão logo é levantada: se Paulo era moralmente contra a escravidão, por que ele não incentivou uma rebelia dos escravos contra seus senhores para ganhar a liberdade? A resposta está justamente no fato de que o império romano, com muito mais força e poder, iria facilmente aniquilá-los, o que seria muito pior. Em outras palavras, dadas as devidas circunstâncias da época, aguentar a escravidão seria um mal menor do que buscar a liberdade através de uma “revolução” sangrenta que só acabaria em morte.

E isso me leva à análise do último ponto, o qual foi abordado na sala de aula do mestrado: seria ético se um cristão, vivendo no século XX e sabendo da carnificina que Hitler faria, se levantasse contra ele e o assassinasse, evitando milhões de mortes? Eu defendi que sim, usando como justificativa o princípio do mal menor (a morte de umditador sanguinário para a salvação de milhões de vidas inocentes), mas houve gente que defendeu o contrário usando um texto onde Paulo ensina a submissão às autoridades:

“Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas. Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos” (Romanos 13:1-2)

O texto parece ser bastante claro; no entanto, ele deve ser entendido de acordo com as circunstâncias da época. Seria realmente inútil se um cristão da época tentasse se rebelar contra Nero, pois os cristãos não passavam de uma pequena facção do judaísmo sem absolutamente poder político nenhum. Em outras palavras, se alguém matasse Nero, ou mesmo se matasse toda a família imperial e todo o Senado, no dia seguinte surgiria uma prole tão ruim quanto a mesma. Era simplesmente impossível mudar o sistema naquela altura. É a mesma coisa que se aplica à questão da escravidão: os apóstolos não eram favoráveis à escravidão, mas eles não podiam fazer nada a respeito, porque não tinham o menor poder ou influência política para tal. No entanto, uma vez que os cristãos passaram a exercer o poder, especialmente através da Reforma Protestante, líderes evangélicos como William Wilberforce e Abraham Lincoln se levantaram para mudar o sistema vigente e acabar com a escravidão.

A questão aqui não se trata de ser a favor ou contra a escravidão ou os imperadores romanos ímpios (e é óbvio que em sentido moral os cristãos eram contra ambos), mas sim de ter poder político para mudar algo a este respeito. Pregar a dissolução da monarquia romana em um mundo onde os cristãos não podiam fazer nada a este respeito era inútil. A única saída era a submissão. Em um cenário totalmente diferente, não há nada que impeça os cristãos de influenciarem a sociedade e tomarem medidas para o bem da mesma, ainda que inclua o mal menor na morte de um ditador sanguinário.

É também problemático tomar Romanos 13:1-2 ao pé da letra, uma vez que se ele for seguido à risca nos levaria a uma completa e absoluta inércia quanto a qualquer medida política que seja. Por exemplo, seria contraditório protestarmos nas ruas contra o governo do PT (ou qualquer outro governo que seja) se foi Deus que estabeleceu a presidente Dilma ali. Estaria tal pessoa lutando contra os desígnios de Deus? E se esse líder não for a Dilma, mas alguém como Hitler, Stalin ou Mussolini? Foi Deus que instituiu esses líderes nessas posições a fim de trucidar e massacrar milhões de pessoas inocentes? Se alguém tentar tirá-los do poder – ainda que democraticamente – estaria se colocando contra o Deus que os instituiu?

Se a resposta for “sim”, então o cristão não poderia fazer absolutamente nada em âmbito político. Ele não deveria fazer militância comunista contra o capitalismo nem vice-versa; não teria razões para protestar contra um governo ou tirá-lo do poder via impeachment,e sequer deveria fazer questão de votar, já que o “candidato escolhido por Deus” ganharia inevitavelmente de uma forma ou de outra – mesmo que este seja um crápula, um assassino ou um corrupto, ou mesmo tudo isso junto. Isso nos levaria a uma absoluta passividade que quase ninguém estaria disposto a admitir. Se essa sujeição à autoridade “instituída por Deus” for levada às últimas consequencias, deveríamos obedecer ao governo mesmo quando o governo institui algo contrário à moral cristã e às Escrituras. Se abrirmos exceção para isso, estaríamos abrindo um precedente para a desobediência ao Estado “instituído por Deus”, e, se há justificativas para desobedecer as autoridades políticas, então o próprio argumento baseado em Romanos 13:1-2 não faz sentido algum.

Se, por outro lado, podemos democraticamente nos levantar contra um governo e tirá-lo do poder, sem com isso estarmos agredindo o texto de Romanos 13:1-2, então nada impede que o mesmo possa se aplicar ao exemplo do assassinato de Hitler a fim de destituí-lo. Pode-se argumentar que no caso de Hitler é diferente, pois isso envolveria assassinato e não mera deposição. Mas neste caso o assassinato seria justificável em função do princípio do mal menor, visto anteriormente. Só se as autoridades fossem absolutamente intocáveis é que este princípio não se aplicaria aqui, mas já vimos que ninguém na prática entende desta maneira. Não há nada em Romanos 13:1-2 que diga que este “rebelar” significa somente “matar”. Se ele for levado ao pé da letra, qualquer atitude que atue contra o desejo soberano do governante deveria ser condenada. Desta forma, nem o impeachment deveria ser aceitável, já que nenhum governante “instituído por Deus” quer ser destituído de seu cargo, e em sua própria perspectiva os que querem tirá-lo do poder estão se rebelando contra a sua vontade – o que é aparentemente proibido em Romanos 13:1-2, se levado ao pé da letra e aplicado aos dias de hoje.

Essa discussão ainda gira em torno de outros fatores. Por exemplo, e se alguém de fatotivesse matado Hitler e assumido o governo da Alemanha na época? Alguém poderia reclamar dizendo que Hitler foi instituído por Deus, porque era uma autoridade. Mas sob essa mesma perspectiva, o sujeito que assassinou Hitler também teria sido instituído por Deus, pois também seria uma autoridade. Condenar a atitude deste último por causa do que ele fez ao primeiro seria se rebelar contra uma autoridade também. Se Deus tirou um do poder e colocou outro no lugar, “quem és tu, ó homem, para questionar a Deus”?

A coisa complica ainda mais se houver mais de uma autoridade no poder, ou duas autoridades conflitantes lutando pelo poder. Tome como exemplo o caso da divisão do Reino de Israel entre o Norte e o Sul, ocasião na qual Roboão reinava. Este rei estava sobrecarregando os israelitas com muitos impostos, mais do que eles poderiam suportar. Consequentemente, eles se rebelaram e estabeleceram o Reino do Norte, sob a liderança de Jeroboão. Como um israelita deveria proceder? Condenando a atitude do Reino do Norte, porque Roboão era uma autoridade “instituída por Deus”? Ou apoiando o rei Jeroboão, pois, como rei, também teria sido “instituído por Deus”? Deveríamos nos revoltar contra Jeroboão, por ter se rebelado contra Roboão? Mas neste caso também estaríamos pecando, pois Jeroboão a esta altura já era uma outra autoridade.

Seja lá como eles saiam deste dilema, o fato é que levar ao pé da letra os versos de Romanos 13:1-2 incorreria nas mais diversas contradições que poderia elencar aqui. O sentido prático do texto é que devemos honrar as autoridades, mas isto não deve ser levado até as últimas consequencias – o que nos levaria a defender Hitler custe o que custasse; afinal, ele era a “autoridade” da Alemanha nazista na época. A “submissão” à autoridade, no entanto, não está acima da submissão a Deus. Isso significa que se Hitler ou qualquer outro governante ímpio que empregue perseguição, tortura e morte como formas de governo for morto por um cristão que em lugar dessa forma monstruosa de governo der luz a uma democracia, eu entendo que ele está dentro do princípio moralmente justificável do mal menor, e que sua atitude, embora má em si mesma, é “boa” naquela mesma concepção relativa de Aristóteles, o qual estava certo quando disse que “aquilo que é preferível sempre é um bem, e quanto o mais preferível este seja maior bem é”.

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)


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[1] Tomás de Aquino, Suma Teológica, parte 3, q. 64, art. 5.
[2] Aristóteles, Ética a Nicômaco, v. 3.
[3] Richard Dawkins, Deus: um Delírio. Companhia das Letras: 2007.
[4] ibid.