Agostinho é de longe o mais
célebre Pai da Igreja do Ocidente. Ele é considerado o mais proeminente doutor
da Igreja pelos católicos e também é louvado por muitos protestantes que o tem
como um dos “pais teológicos” da Reforma, graças às suas doutrinas sobre
salvação e graça (o próprio Lutero era um agostiniano declarado). Sua aclamação
chega tão longe que William Jurgens, um padre e
historiador católico contemporâneo, ousa dizer:
“Se
tivermos que lidar com a indesejável proposta de ter de destruir completamente
cada uma das obras de Agostinho ou as obras de todos os outros Pais da Igreja e
escritores, eu não tenho dúvida que todos os outros teriam de ser sacrificados.
Agostinho deveria permanecer. De todos os Pais, Agostinho é quem é o mais
erudito, quem teve as mais notáveis percepções teológicas, e quem é
efetivamente mais prolífico”
No Oriente, Agostinho também é
venerado, mas com menos pompa. Uma das razões disso foi a popularização de
doutrinas agostinianas tipicamente ocidentais que nunca foram aceitas no
Oriente, tais como a cláusula Filioque e o monergismo. Mas a principal delas é,
sem dúvida, a doutrina do pecado original. Agostinho formulou a teologia
segundo a qual nós herdamos não apenas as consequências da Queda de
Adão, mas também sua culpa. E essa culpa seria transmitida
automaticamente a cada pessoa de geração a geração, o que faz com que todos já
nasçam condenados em pecado.
O ensino de que Deus nos culpa
por coisas que não fizemos e que foram feitas milhares de anos antes de
existirmos criou raízes na teologia ocidental, que tem Agostinho por pai.
Tornou-se a crença oficial da Igreja Católica Romana e, mais tarde, foi adotada
também pelos reformadores protestantes. Não importava o quanto o ensino não
fizesse sentido ou ferisse a imagem de Deus: se ele veio de Agostinho, devia
estar certo. Não importava nem mesmo se este ensino contrariava expressamente
textos bíblicos como Pv 17:15 («o que condena o justo é abominável ao Senhor»)
e Ez 18:20, que diz:
“A
alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniquidade do pai, nem o
pai, a iniquidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a
perversidade do perverso cairá sobre este” (Ezequiel
18:20)
Muitos usam o texto de Êx 20:5 («visito
a iniquidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração») para
sustentar o conceito de “maldição hereditária”, mas se esquecem que o verso
seguinte diz que “trato com bondade até mil
gerações aos que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êx 20:6). O
objetivo não é dizer que Deus literalmente amaldiçoa a quarta geração de
alguém que pecou e que abençoa literalmente até a milésima geração de um
justo (se fosse assim, quase todos nós estaríamos sob bênção e maldição ao
mesmo tempo, por causa de algum antepassado remoto), mas era uma hipérbole
usada para ilustrar o quanto Deus é muito mais inclinado a abençoar do que a
amaldiçoar.
Por essa razão, os ortodoxos até
hoje preferem usar o termo “pecado ancestral” do que “pecado original” (embora
muitos que usem o termo “pecado original” creiam no mesmo conceito do “pecado
ancestral”). Por “pecado ancestral”, entende-se a Queda que o primeiro homem
sofreu, ao desobedecer a Deus e deixar que o pecado entrasse no mundo,
corrompendo toda a criação e, por conseguinte, toda a posteridade. Mas isso não
significa que Deus transfere o pecado de Adão na conta de cada um de nós antes
mesmo de cometermos pecados pessoais, o que seria uma injustiça incompatível
com o caráter de um Deus justo. Significa que nós sofremos as consequências do
pecado, mesmo que não herdemos a culpa em si.
Cada pessoa é responsável por
sua própria culpa. Isso não anula, contudo, as consequências de ações
culposas para terceiros. Por exemplo, uma mãe fumante que engravida pode passar
ao seu filho alguma doença respiratória, um motorista que dirige bêbado pode
levar à morte pedestres ou outros motoristas que não beberam, um jogador que
perde um pênalti decisivo numa final de Copa do Mundo compromete toda a equipe
e decepciona milhões de torcedores (Baggio sabe bem disso), e um presidente
incompetente pode arruinar uma nação inteira (melhor eu não comentar essa). Em
todos esses exemplos o culpado é um só, mas as consequências do erro
incidem de uma forma ou de outra na vida de muito mais gente.
Seria injusto punir a esposa
pelos crimes do marido, mas se o marido for preso, isso inevitavelmente irá
piorar a vida da esposa de alguma maneira, seja pelo vínculo emocional com ele,
seja pela ausência paterna na criação dos filhos, seja por dificuldades
econômicas ou por outra razão. O mesmo ocorre com o pecado de Adão: embora
apenas Adão seja culpado pelo seu próprio pecado, o que ele fez trouxe
consequências para toda a posteridade, porque as vidas humanas não estão
desconectadas umas das outras. Tanto o bem como o mal que praticamos impacta diretamente
outras vidas, e isso é particularmente verdadeiro para o primeiro homem criado,
que de certa forma representava toda a humanidade.
Graças ao pecado de Adão nós
nascemos não com a culpa ou com o pecado em si, mas com uma natureza inclinada
para o pecado – aquilo que a Bíblia costumeiramente chama de “carne” e que
está sempre desejando coisas contrárias à vontade de Deus, que prejudicam a nós
mesmos ou ao próximo. Isso significa que em um momento ou outro iremos pecar, mas
não que já nascemos “pecadores” por causa dos pecados de outro. Quando Davi diz
que “em iniquidade fui formado, e em pecado me
concebeu minha mãe” (Sl 51:5), o sentido não é que ele peca desde o
ventre ou que os pecados de sua mãe lhe foram transmitidos, mas que sua
natureza é voltada ao pecado desde o nascimento, desde que sua mãe o concebeu
em pecado. Para usar a linguagem que os escolásticos gostariam, nós nascemos
com a potência do pecado, não com o ato em si.
Em toda a Bíblia, ninguém é
condenado pelo pecado de Adão: todos pagam o preço pelo seu próprio pecado. É
sempre pelo mal que a própria pessoa fez que ela é condenada («os que fizeram o
bem sairão para a ressurreição da vida; e os que fizeram o mal para a
ressurreição da condenação» – cf. Jo 5:29), nunca pelos pecados de um antepassado.
É por isso que Paulo disse que “cada um de nós
prestará contas de si mesmo a Deus” (Rm 14:12), e não que
prestará contas do pecado de Adão. E logo após dizer que o pecado entrou no
mundo por um homem e pelo pecado a morte, ele completa que “a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm
5:12).
A morte passou a todos os homens
porque todos os homens pecaram, e não porque Adão pecou. O pecado de
Adão não foi automaticamente colocado na conta de cada criatura antes mesmo de
nascer, mas propiciou que outras criaturas pudessem vir a pecar e receber
também elas o seu próprio julgamento. Quando Paulo diz que “muitos morreram por causa da transgressão de um só” (Rm
5:15), não é porque toda a humanidade foi condenada à morte pelos erros de
Adão, mas porque o erro de Adão abriu as portas para a humanidade toda ser
condenada pelos seus próprios pecados.
Note com atenção o verso 19,
onde Paulo conclui seu raciocínio dizendo:
“Assim
como por meio da desobediência de um só homem muitos foram feitos pecadores,
assim também, por meio da obediência de um único homem muitos serão feitos
justos” (Romanos 5:19)
Obviamente, ninguém em sã
consciência diria que a obediência de Jesus por si só tornou muitos homens
justos. Todos sabem que é preciso crer em Jesus para que essa fé lhe
seja imputada como justiça (Rm 4:5). Se nós não o aceitarmos, o ato de Jesus
por si só não nos valerá nada. Se isso é verdade em relação à segunda metade do
verso, então também é verdadeiro para a primeira parte: a desobediência de Adão
não nos torna pecadores por automático, mas propicia que sejamos pecadores caso
sigamos esse caminho.
Observe que Paulo não diz que “todos
foram feitos pecadores”, assim como não diz que “todos serão feitos
justos”, porque a desobediência de Adão não é imputada automaticamente a todos
os homens, assim como a obediência de Cristo (se assim fosse, toda a humanidade
seria condenada por causa de Adão e toda a humanidade seria salva por causa de
Cristo, o que nos levaria ao universalismo, a crença na salvação universal até
dos ímpios).
A ideia de condenar alguém pelos
pecados de outra pessoa não é diferente de alguém te multar porque o seu pai
dirigiu bêbado, com a diferença de que no caso do pecado original o seu pai
paga a multa, você paga a multa, seus filhos pagam a multa e todos pagam a
multa pelos erros de um só. Isso não apenas ofende o bom senso cristão, como
leva a absurdos teológicos dos mais grotescos. Um deles é a ideia do limbo, que
durante a Idade Média era tão popular quanto o purgatório. A pergunta que não
queria calar era: para onde vão os bebês que morreram antes de receber o
batismo?
Agostinho percebeu que eles não podiam
ir para o céu, já que isso conflitaria com sua teologia do pecado original.
Adão teria transmitido a culpa do seu pecado para toda a posteridade, e sem o
batismo regenerador não tinha como defender a ida de crianças para o céu, visto
serem pecadoras por conta de Adão e o pecado não pode ficar impune. Por outro
lado, ele pensava ser desumano demais dizer que os bebês vão para o fogo do
inferno, ainda mais nessa época, quando já se acreditava em um tormento eterno.
Sem saber o que fazer com os
bebês pecadores que morreram sem receber o batismo, Agostinho especulou a
possibilidade de existir um “meio-termo” que os livrava do tormento do inferno,
ao mesmo tempo em que lhes fechava as portas do Paraíso. Ali os infantes não poderiam
ver a face de Deus ou estar em comunhão com seus entes queridos, mas também não
estariam amargando um terrível sofrimento sem fim. Este suposto lugar foi
intitulado “limbo”, e a Igreja Católica gostou tanto dele que com o tempo quem
não cresse no limbo estava sujeito à Inquisição e a penas das mais diversas.
Ironicamente, em pleno ano de 2007 a Comissão Teológica do Vaticano aprovada
pelo papa Bento XVI “extinguiu” o limbo (embora não tenha dito para onde foram
aqueles que se acreditou por tanto tempo estarem lá).
Entre os protestantes, o
problema não foi menor. Herdando a mesma herança agostiniana, os calvinistas se
viram em um dilema onde o limbo não era uma solução, tendo em vista a completa
ausência de textos bíblicos falando sobre tal lugar. Isso fez com que muitos
chegassem à conclusão de que tais bebês vão simplesmente ao inferno (e, pasme,
alguns continuam defendendo isso em pleno século XXI), não obstante a maior
parte dos evangélicos concordar que os bebês morrem salvos, já que não cometeram
pecados pessoais (até porque é difícil imaginar Jesus dizendo “vinde a mim as
criancinhas porque o Reino dos céus pertence a quem é semelhante a elas”, se
elas na verdade vão direto pro inferno).
O limbo e os “bebês do inferno”
são só um pequeno exemplo de como equívocos teológicos podem levar a outros
equívocos teológicos ainda maiores para tentar explicar ou remediar os
problemas que o primeiro erro acarreta, algo que com o tempo vai se tornando
uma bola de neve: cada vez mais erros são inventados para dar sustentação aos
anteriores, porque toda a base está contaminada. Isso explica em grande parte
as doutrinas medievais criadas pela Igreja Romana ao longo dos séculos, quase
todas elas frutos de conjectura escolástica para tentar salvar uma crença notoriamente
falsa.
Também serve de exemplo de que
nem as mentes mais geniais e ilustres estão imunes ao erro – Agostinho era sem
dúvida nenhuma um gigante que contribuiu em muito para a teologia e a fé, mas quem
confiou nele como uma autoridade infalível sucumbiu a erros que dificilmente
teria caído sozinho.
*Trecho extraído de meu livro "Os 100 Maiores Acontecimentos da História do Cristianismo", que você pode comprar ou baixar gratuitamente na página dos livros.
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