13 de fevereiro de 2021

Agostinho, o pecado original e a anatomia de uma inovação

 


Agostinho é de longe o mais célebre Pai da Igreja do Ocidente. Ele é considerado o mais proeminente doutor da Igreja pelos católicos e também é louvado por muitos protestantes que o tem como um dos “pais teológicos” da Reforma, graças às suas doutrinas sobre salvação e graça (o próprio Lutero era um agostiniano declarado). Sua aclamação chega tão longe que William Jurgens, um padre e historiador católico contemporâneo, ousa dizer: 

“Se tivermos que lidar com a indesejável proposta de ter de destruir completamente cada uma das obras de Agostinho ou as obras de todos os outros Pais da Igreja e escritores, eu não tenho dúvida que todos os outros teriam de ser sacrificados. Agostinho deveria permanecer. De todos os Pais, Agostinho é quem é o mais erudito, quem teve as mais notáveis percepções teológicas, e quem é efetivamente mais prolífico”
 
No Oriente, Agostinho também é venerado, mas com menos pompa. Uma das razões disso foi a popularização de doutrinas agostinianas tipicamente ocidentais que nunca foram aceitas no Oriente, tais como a cláusula Filioque e o monergismo. Mas a principal delas é, sem dúvida, a doutrina do pecado original. Agostinho formulou a teologia segundo a qual nós herdamos não apenas as consequências da Queda de Adão, mas também sua culpa. E essa culpa seria transmitida automaticamente a cada pessoa de geração a geração, o que faz com que todos já nasçam condenados em pecado.
 
O ensino de que Deus nos culpa por coisas que não fizemos e que foram feitas milhares de anos antes de existirmos criou raízes na teologia ocidental, que tem Agostinho por pai. Tornou-se a crença oficial da Igreja Católica Romana e, mais tarde, foi adotada também pelos reformadores protestantes. Não importava o quanto o ensino não fizesse sentido ou ferisse a imagem de Deus: se ele veio de Agostinho, devia estar certo. Não importava nem mesmo se este ensino contrariava expressamente textos bíblicos como Pv 17:15 («o que condena o justo é abominável ao Senhor») e Ez 18:20, que diz:
 
“A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai, a iniquidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a perversidade do perverso cairá sobre este” (Ezequiel 18:20)
 
Muitos usam o texto de Êx 20:5 («visito a iniquidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração») para sustentar o conceito de “maldição hereditária”, mas se esquecem que o verso seguinte diz que “trato com bondade até mil gerações aos que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êx 20:6). O objetivo não é dizer que Deus literalmente amaldiçoa a quarta geração de alguém que pecou e que abençoa literalmente até a milésima geração de um justo (se fosse assim, quase todos nós estaríamos sob bênção e maldição ao mesmo tempo, por causa de algum antepassado remoto), mas era uma hipérbole usada para ilustrar o quanto Deus é muito mais inclinado a abençoar do que a amaldiçoar.
 
Por essa razão, os ortodoxos até hoje preferem usar o termo “pecado ancestral” do que “pecado original” (embora muitos que usem o termo “pecado original” creiam no mesmo conceito do “pecado ancestral”). Por “pecado ancestral”, entende-se a Queda que o primeiro homem sofreu, ao desobedecer a Deus e deixar que o pecado entrasse no mundo, corrompendo toda a criação e, por conseguinte, toda a posteridade. Mas isso não significa que Deus transfere o pecado de Adão na conta de cada um de nós antes mesmo de cometermos pecados pessoais, o que seria uma injustiça incompatível com o caráter de um Deus justo. Significa que nós sofremos as consequências do pecado, mesmo que não herdemos a culpa em si.
 
Cada pessoa é responsável por sua própria culpa. Isso não anula, contudo, as consequências de ações culposas para terceiros. Por exemplo, uma mãe fumante que engravida pode passar ao seu filho alguma doença respiratória, um motorista que dirige bêbado pode levar à morte pedestres ou outros motoristas que não beberam, um jogador que perde um pênalti decisivo numa final de Copa do Mundo compromete toda a equipe e decepciona milhões de torcedores (Baggio sabe bem disso), e um presidente incompetente pode arruinar uma nação inteira (melhor eu não comentar essa). Em todos esses exemplos o culpado é um só, mas as consequências do erro incidem de uma forma ou de outra na vida de muito mais gente.
 
Seria injusto punir a esposa pelos crimes do marido, mas se o marido for preso, isso inevitavelmente irá piorar a vida da esposa de alguma maneira, seja pelo vínculo emocional com ele, seja pela ausência paterna na criação dos filhos, seja por dificuldades econômicas ou por outra razão. O mesmo ocorre com o pecado de Adão: embora apenas Adão seja culpado pelo seu próprio pecado, o que ele fez trouxe consequências para toda a posteridade, porque as vidas humanas não estão desconectadas umas das outras. Tanto o bem como o mal que praticamos impacta diretamente outras vidas, e isso é particularmente verdadeiro para o primeiro homem criado, que de certa forma representava toda a humanidade.
 
Graças ao pecado de Adão nós nascemos não com a culpa ou com o pecado em si, mas com uma natureza inclinada para o pecado – aquilo que a Bíblia costumeiramente chama de “carne” e que está sempre desejando coisas contrárias à vontade de Deus, que prejudicam a nós mesmos ou ao próximo. Isso significa que em um momento ou outro iremos pecar, mas não que já nascemos “pecadores” por causa dos pecados de outro. Quando Davi diz que “em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51:5), o sentido não é que ele peca desde o ventre ou que os pecados de sua mãe lhe foram transmitidos, mas que sua natureza é voltada ao pecado desde o nascimento, desde que sua mãe o concebeu em pecado. Para usar a linguagem que os escolásticos gostariam, nós nascemos com a potência do pecado, não com o ato em si.
 
Em toda a Bíblia, ninguém é condenado pelo pecado de Adão: todos pagam o preço pelo seu próprio pecado. É sempre pelo mal que a própria pessoa fez que ela é condenada («os que fizeram o bem sairão para a ressurreição da vida; e os que fizeram o mal para a ressurreição da condenação» – cf. Jo 5:29), nunca pelos pecados de um antepassado. É por isso que Paulo disse que “cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus” (Rm 14:12), e não que prestará contas do pecado de Adão. E logo após dizer que o pecado entrou no mundo por um homem e pelo pecado a morte, ele completa que “a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5:12).
 
A morte passou a todos os homens porque todos os homens pecaram, e não porque Adão pecou. O pecado de Adão não foi automaticamente colocado na conta de cada criatura antes mesmo de nascer, mas propiciou que outras criaturas pudessem vir a pecar e receber também elas o seu próprio julgamento. Quando Paulo diz que “muitos morreram por causa da transgressão de um só” (Rm 5:15), não é porque toda a humanidade foi condenada à morte pelos erros de Adão, mas porque o erro de Adão abriu as portas para a humanidade toda ser condenada pelos seus próprios pecados.
 
Note com atenção o verso 19, onde Paulo conclui seu raciocínio dizendo:
 
“Assim como por meio da desobediência de um só homem muitos foram feitos pecadores, assim também, por meio da obediência de um único homem muitos serão feitos justos” (Romanos 5:19)
 
Obviamente, ninguém em sã consciência diria que a obediência de Jesus por si só tornou muitos homens justos. Todos sabem que é preciso crer em Jesus para que essa fé lhe seja imputada como justiça (Rm 4:5). Se nós não o aceitarmos, o ato de Jesus por si só não nos valerá nada. Se isso é verdade em relação à segunda metade do verso, então também é verdadeiro para a primeira parte: a desobediência de Adão não nos torna pecadores por automático, mas propicia que sejamos pecadores caso sigamos esse caminho.
 
Observe que Paulo não diz que “todos foram feitos pecadores”, assim como não diz que “todos serão feitos justos”, porque a desobediência de Adão não é imputada automaticamente a todos os homens, assim como a obediência de Cristo (se assim fosse, toda a humanidade seria condenada por causa de Adão e toda a humanidade seria salva por causa de Cristo, o que nos levaria ao universalismo, a crença na salvação universal até dos ímpios).
 
A ideia de condenar alguém pelos pecados de outra pessoa não é diferente de alguém te multar porque o seu pai dirigiu bêbado, com a diferença de que no caso do pecado original o seu pai paga a multa, você paga a multa, seus filhos pagam a multa e todos pagam a multa pelos erros de um só. Isso não apenas ofende o bom senso cristão, como leva a absurdos teológicos dos mais grotescos. Um deles é a ideia do limbo, que durante a Idade Média era tão popular quanto o purgatório. A pergunta que não queria calar era: para onde vão os bebês que morreram antes de receber o batismo?
 
Agostinho percebeu que eles não podiam ir para o céu, já que isso conflitaria com sua teologia do pecado original. Adão teria transmitido a culpa do seu pecado para toda a posteridade, e sem o batismo regenerador não tinha como defender a ida de crianças para o céu, visto serem pecadoras por conta de Adão e o pecado não pode ficar impune. Por outro lado, ele pensava ser desumano demais dizer que os bebês vão para o fogo do inferno, ainda mais nessa época, quando já se acreditava em um tormento eterno.
 
Sem saber o que fazer com os bebês pecadores que morreram sem receber o batismo, Agostinho especulou a possibilidade de existir um “meio-termo” que os livrava do tormento do inferno, ao mesmo tempo em que lhes fechava as portas do Paraíso. Ali os infantes não poderiam ver a face de Deus ou estar em comunhão com seus entes queridos, mas também não estariam amargando um terrível sofrimento sem fim. Este suposto lugar foi intitulado “limbo”, e a Igreja Católica gostou tanto dele que com o tempo quem não cresse no limbo estava sujeito à Inquisição e a penas das mais diversas. Ironicamente, em pleno ano de 2007 a Comissão Teológica do Vaticano aprovada pelo papa Bento XVI “extinguiu” o limbo (embora não tenha dito para onde foram aqueles que se acreditou por tanto tempo estarem lá).
 
Entre os protestantes, o problema não foi menor. Herdando a mesma herança agostiniana, os calvinistas se viram em um dilema onde o limbo não era uma solução, tendo em vista a completa ausência de textos bíblicos falando sobre tal lugar. Isso fez com que muitos chegassem à conclusão de que tais bebês vão simplesmente ao inferno (e, pasme, alguns continuam defendendo isso em pleno século XXI), não obstante a maior parte dos evangélicos concordar que os bebês morrem salvos, já que não cometeram pecados pessoais (até porque é difícil imaginar Jesus dizendo “vinde a mim as criancinhas porque o Reino dos céus pertence a quem é semelhante a elas”, se elas na verdade vão direto pro inferno).
 
O limbo e os “bebês do inferno” são só um pequeno exemplo de como equívocos teológicos podem levar a outros equívocos teológicos ainda maiores para tentar explicar ou remediar os problemas que o primeiro erro acarreta, algo que com o tempo vai se tornando uma bola de neve: cada vez mais erros são inventados para dar sustentação aos anteriores, porque toda a base está contaminada. Isso explica em grande parte as doutrinas medievais criadas pela Igreja Romana ao longo dos séculos, quase todas elas frutos de conjectura escolástica para tentar salvar uma crença notoriamente falsa.
 
Também serve de exemplo de que nem as mentes mais geniais e ilustres estão imunes ao erro – Agostinho era sem dúvida nenhuma um gigante que contribuiu em muito para a teologia e a fé, mas quem confiou nele como uma autoridade infalível sucumbiu a erros que dificilmente teria caído sozinho.

*Trecho extraído de meu livro "Os 100 Maiores Acontecimentos da História do Cristianismo", que você pode comprar ou baixar gratuitamente na página dos livros.

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