3 de março de 2021

A conversão de Constantino e as consequências para o Cristianismo

 

Era outubro de 312 d.C. O jovem Constantino, filho do imperador Constâncio, tinha pela frente uma batalha decisiva pelo trono de Roma. Nessa época, com o império dividido entre as tetrarquias, eram vários os postulantes ao trono, o que provocou dias difíceis de guerra civil. O adversário de Constantino era Magêncio, filho de Maximiano. Nessa época, os cristãos já haviam sido expulsos do exército, e embora a perseguição de Diocleciano e Galério tivesse chegado ao fim, ainda vivia tempos difíceis. Mas Constantino não tinha nada a ver com isso: o que ele precisava era da vitória na batalha decisiva. Tudo mudou quando ele olhou para o céu no seu acampamento e viu uma cruz brilhante, na qual se podia ler: “Com este sinal vencerás”. 

Mais tarde ele teve um sonho onde teria visto Jesus segurando a mesma cruz, o qual lhe teria instruído a colocar esse sinal nos escudos de seus soldados, o que ele fez prontamente. A visão e o sonho do então general Constantino mudariam a história do Cristianismo de um modo que ninguém seria capaz de imaginar ou prever. Sim, Constantino venceu a batalha. Sim, Constantino tornou-se imperador de Roma. E sim, o Cristianismo passou a ser patrocinado pelo império, apesar do próprio Constantino só ter se batizado no fim da vida (uma prática todavia comum entre aqueles que acreditavam na “regeneração batismal”, doutrina que postula que o batismo literalmente limpa os pecados, o que fez com que muitos cristãos adiassem o batismo o quanto possível). 

Logo no ano seguinte, Constantino promulgou o Édito de Milão, o qual assegurava oficialmente a tolerância aos cristãos. Isso já seria extraordinário para um grupo acostumado às perseguições, mas a coisa não parou por aí. Constantino passou a conceder ao Cristianismo muitos dos privilégios que o paganismo romano desfrutava, como que incentivando a cristianização do império. Não apenas as igrejas e propriedades cristãs confiscadas na perseguição de Diocleciano voltavam aos seus donos originais, mas os sacerdotes cristãos passavam a ser sustentados pelo Estado, assim como eram os sacerdotes pagãos.
 
Além disso, Constantino aliviou os impostos sobre igrejas e propriedades cristãs, adotou a cruz como símbolo oficial nos escudos dos soldados, convocou concílios para resolver disputas teológicas, criou tribunais eclesiásticos cristãos, reconheceu o domingo como o dia de descanso e implantou igrejas nos melhores terrenos da nova capital do império, Constantinopla, a nova e luxuosa cidade construída em sua homenagem. A «nova Roma», como a cidade passou a ser chamada, seguiria sendo uma das mais ricas do mundo por toda a Idade Média, e seu patriarca foi elevado ao mesmo status do bispo de Roma, da antiga capital. De forma rápida e impressionante, o Cristianismo passava de religião perseguida para privilegiada.
 
No entanto, muitos se perguntam se essa conversão foi realmente sincera. Para começar, Constantino pouco se diferenciava na forma de governar em relação aos seus predecessores. Sobre ele pairam as acusações de ter ordenado o assassinato de seu cunhado Licínio, de seu filho primogênito e de uma de suas esposas, alegadamente pelos crimes de traição e conspiração, mas na verdade como um meio de se consolidar no poder (o que não impediu a Igreja Ortodoxa de canonizá-lo). O próprio Constantino só se tornou imperador através de um golpe, uma vez que a sucessão legal recaía em seu oponente Magêncio (o mesmo da batalha da cruz), de acordo com o direito de sucessão deixado por Galério.
 
Constantino é frequentemente descrito como um imperador de pavio curto e temperamento difícil, irando-se constantemente e agindo como um tirano. De fato, apesar de Constantino ter caído nas graças dos cristãos medievais pelo seu favor à Igreja, ele era visto por muitos em sua época como um déspota, à semelhança de outros tantos que ocuparam o trono de Roma. Além disso, um dia antes de morrer ele fez um sacrifício a Zeus, e jamais abandonou o título pagão de pontifex maximus, mais tarde adotado também pelos papas. Ao que parece, Constantino tinha mesmo boas razões para retardar o batismo o máximo que pudesse!
 
Diante disso, há quem pense que a conversão de Constantino foi um golpe estratégico na religião cristã – algo parecido com o ditado “se não podes com eles, junte-se a eles”. Constantino teria percebido que a estratégia de seus antecessores era vã, uma vez que os cristãos continuavam crescendo apesar das perseguições. Se o paganismo não podia derrotar o Cristianismo, o jeito era “paganizar” o Cristianismo, moldando-o de modo a torná-lo aceitável aos pagãos. Essa tese também não responde a tudo, já que grande parte do paganismo que foi invadindo a Igreja não entrou da noite pro dia (algumas ainda levaram séculos).
 
Não foi senão com Teodósio I, que alçou o Cristianismo à posição de religião oficial do império em 380 d.C através do Édito de Tessalônica, que as grandes massas de pagãos “converteu-se” ao Cristianismo por livre e espontânea pressão, uma vez que o paganismo caíra na ilegalidade (algo bastante irônico, já que no período anterior era o inverso que acontecia).
 
E como não se muda uma cultura inteira da noite pro dia – muito menos com quem se converte à força –, muitos dos costumes pagãos passaram a fazer parte da rotina do povo cristão, ainda que inicialmente reprovado pelas autoridades eclesiásticas (embora nem elas fossem um grande exemplo, já que parte significativa da hierarquia antiga havia perdido a vida nas perseguições de Diocleciano e Galério, e boa parte da hierarquia que a substituiu veio dos conversos do paganismo).
 
Assim como no panteão romano de deuses havia um deus do amor, um deus da paz, um deus da guerra e assim por diante, começou a nascer no Cristianismo a ideia de um “santo” responsável por cada uma destas coisas, e muitas outras categorias. Assim como muitas cidades romanas tinham um deus específico para elas, também no meio cristão foram surgindo “santos padroeiros” para cada cidade. Os pagãos tinham por costume adorar Ísis, deusa-mãe do Egito, chamada de “rainha dos céus” e representada por uma imagem de uma mãe amamentando seu filho pequeno. A multidão de pagãos “convertidos” logo a associou à figura de Maria, a mãe de Jesus, e o culto mariano começou a ganhar corpo.
 
Epifânio (310-403), bispo cristão que viveu nessa época, testemunhou com os próprios olhos a corrupção do Cristianismo. Indignado com o culto que se prestava à “rainha dos céus”, ele escreveu:
 
“Não se deve honrar os santos além do seu mérito, que Deus é aquele a quem devemos servir. A Virgem não foi proposta à nossa adoração, porque ela própria adorou aquele que segundo a carne nasceu dela. Ninguém, pois, adore Maria. Só a Deus Pai, Filho e Espírito Santo pertence este mistério, e não a qualquer homem ou mulher. Por conseguinte, cessem certas mulheres néscias de perturbar a Igreja, deixem de dizer: ‘Nós honramos a Rainha do céu', é por isso que com estes discursos e com o oferecer-lhe os seus bolos, cumprem o que foi dantes anunciado: 'Alguns apostatarão da fé, dando-se a espíritos sedutores e às doutrinas dos demônios'. Não, este erro do povo antigo não prevalecerá sobre nós, para nos fazer afastar do Deus vivo e adorar as criaturas” (Haeres, Livro III, 79)
 
Primeiro Epifânio condena a adoração a Maria, e em seguida ordena que as mulheres cessem de chamá-la de “rainha do céu”, o mesmo título pagão ostentado por Ísis. Para ele estava claro que chamar a mãe de Jesus de “rainha do céu” extrapolava o limite da honra e entrava no perigoso campo da idolatria, a qual só se aprofundou com o passar do tempo. A despeito da advertência de Epifânio, o culto à “rainha dos céus” se desenvolveu, a ponto de o papa Pio XII em sua encíclica “A Rainha do Céu” (1954) declarar Maria a «majestosa soberana e Rainha da Igreja» e a «rainha de todas as criaturas e de todo o universo», e de São Bernardino de Siena (1380-1444) referir-se a ela como a «Rainha do mundo e de todas as criaturas», razão pela qual «ao império de Maria todos estão sujeitos, até o próprio Deus».
 
Na clássica obra “As Glórias de Maria”, de Santo Afonso de Ligório (1696-1787), é expressamente dito que «é tributada ao Filho e ao Rei toda a honra que se presta à Mãe e Rainha» (p. 131), uma vez que «estão sujeitos ao domínio de Maria os anjos, os homens e todas as coisas do céu e da terra» (p. 35). Nessa mesma obra Maria é chamada de toda-poderosa, salvadora da humanidade, co-redentora, porta do céu e escada do Paraíso, além de nos surpreender com uma declaração ousada e chocante: «Muitas coisas se pedem a Deus, e não se alcançam. Pedem-se a Maria, e conseguem-se» (p. 118).
 
Outra consequência da paganização do Cristianismo foi o crescente culto às imagens. Orígenes, Justino, Aristides, Atenágoras, Irineu, Tertuliano, Cipriano, Lactâncio e praticamente todos os Pais da Igreja pré-nicenos deixaram claro que no culto cristão não havia imagens, algo que os pagãos não podiam aceitar, pois toda a adoração que conheciam consistia em objetos tangíveis. Os templos pagãos se transformaram em templos cristãos, mas suas imagens foram convenientemente mantidas, cujos nomes foram apenas modificados. Isso escandalizou cristãos tradicionais como Epifânio, que manifestou seu horror ao se deparar com uma imagem numa igreja cristã:
 
“Eu encontrei um véu suspenso nas portas desta mesma igreja, o qual estava colorido e pintado, ele tinha uma imagem, pode ser a imagem de Cristo ou de algum santo; eu não recordo mais quem ela representava. Eu, pois, tendo visto este sacrilégio; que numa igreja de Cristo, contra a autoridade das Escrituras, a imagem de um homem estava suspensa, rasguei aquele véu”
 
É evidente que essas mudanças não ocorreram ao mesmo tempo em todo lugar, nem foram aceitas sem certa resistência. No Oriente, por exemplo, houve resistência a muitas dessas inovações, e até hoje a Igreja Ortodoxa se recusa a usar imagens de escultura e desconhece doutrinas como purgatório, limbo, indulgências, imaculada conceição, celibato obrigatório ou infalibilidade papal. Outras, como o culto mariano, receberam uma ênfase bem menor, quando comparado ao Ocidente. Mas talvez o mais nocivo de todos os efeitos que a Cristianização do paganismo (ou a paganização do Cristianismo, à sua escolha) causou foi a perigosa mistura entre política e religião.
 
No antigo paganismo romano do qual todos os imperadores antes de Constantino fizeram parte, o imperador era ao mesmo tempo uma autoridade política e religiosa – era o chefe político e militar do império, mas também o sumo sacerdote do paganismo (algo análogo ao que os faraós eram no Egito antigo). Por mais que todos os cristãos pré-nicenos fossem vigorosamente contra essa união entre Igreja e Estado, Constantino quis aplicar ao Cristianismo a mesma relação com o Estado que caracterizava o paganismo romano, e a prova disso é que ele convocou e presidiu o Concílio de Niceia (que, não por coincidência, ocorreu poucos anos após sua “conversão”).
 
Se você não consegue perceber o quão perturbador é isso, imagine se o Bolsonaro ou o Lula (quando era presidente) convocasse um concílio cristão que trata exclusivamente de questões religiosas e presidisse esse concílio como se fosse o chefe da Igreja. Eu não sei você, mas eu acharia um tanto bizarro, pra dizer o mínimo. Não apenas bizarro, mas constrangedor e revoltante – algo que os crentes da época relativizaram, considerando que era melhor aceitar isso do que continuar sofrendo as perseguições selvagens que vinham sofrendo. Porém, essa união entre Igreja e Estado preparou o terreno para a Inquisição, as cruzadas, a caça às bruxas, as disputas sobre as investiduras e toda uma série de querelas que desgastaram tanto a Igreja como o Estado, e criaram inúmeras vítimas.
 
Pior do que isso, a concepção de uma autoridade político-religiosa preparou o terreno para a ascensão do papado, especialmente depois que o império romano foi tomado pelos bárbaros e já não existia mais a figura do imperador. Do antigo império, restava agora apenas a Igreja, e nenhuma igreja local era mais forte no Ocidente que a do bispo de Roma. Ambiciosos pelo domínio do mundo, os papas lutaram por conquistas territoriais, exigiram a submissão de imperadores e reis, instituíram uma teocracia nos Estados Pontifícios e puniram com severidade qualquer sinal de dissidência religiosa – ironicamente, com a mesma forma de punição que o antigo império usava para executar os cristãos: a fogueira.
 
A Igreja passou de perseguida a perseguidora, esquecendo-se de suas raízes. Enquanto combatida pelo Estado resistia heroicamente; agora, aliada ao Estado, agia como o mesmo e até pior. Ninguém melhor que o historiador católico Paul Johnson expôs esse dilema ao perguntar se foi o império que se rendeu ao Cristianismo, ou o Cristianismo que se prostituiu com o império.

*Trecho extraído de meu livro "Os 100 Maiores Acontecimentos da História do Cristianismo", que você pode comprar ou baixar gratuitamente na página dos livros.

Por Cristo e por Seu Reino,

- Siga-me no Facebook para estar por dentro das atualizações!

- Baixe e leia os meus livros clicando aqui.

- Acesse meu canal no YouTube clicando aqui.

0 comentários:

Postar um comentário

ATENÇÃO: novos comentários estão desativados para este blog, mas você pode postar seu comentário em qualquer artigo do meu novo blog: www.lucasbanzoli.com

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.