Era outubro
de 312 d.C. O jovem Constantino, filho do imperador Constâncio, tinha pela
frente uma batalha decisiva pelo trono de Roma. Nessa época, com o império
dividido entre as tetrarquias, eram vários os postulantes ao trono, o que
provocou dias difíceis de guerra civil. O adversário de Constantino era Magêncio,
filho de Maximiano. Nessa época, os cristãos já haviam sido expulsos do
exército, e embora a perseguição de Diocleciano e Galério tivesse chegado ao
fim, ainda vivia tempos difíceis. Mas Constantino não tinha nada a ver com
isso: o que ele precisava era da vitória na batalha decisiva. Tudo mudou quando
ele olhou para o céu no seu acampamento e viu uma cruz brilhante, na qual se
podia ler: “Com este sinal vencerás”.
Mais tarde
ele teve um sonho onde teria visto Jesus segurando a mesma cruz, o qual lhe
teria instruído a colocar esse sinal nos escudos de seus soldados, o que ele
fez prontamente. A visão e o sonho do então general Constantino mudariam a
história do Cristianismo de um modo que ninguém seria capaz de imaginar ou
prever. Sim, Constantino venceu a batalha. Sim, Constantino tornou-se imperador
de Roma. E sim, o Cristianismo passou a ser patrocinado pelo império, apesar do
próprio Constantino só ter se batizado no fim da vida (uma prática todavia
comum entre aqueles que acreditavam na “regeneração batismal”, doutrina que
postula que o batismo literalmente limpa os pecados, o que fez com que muitos
cristãos adiassem o batismo o quanto possível).
Logo no ano
seguinte, Constantino promulgou o Édito de Milão, o qual assegurava oficialmente
a tolerância aos cristãos. Isso já seria extraordinário para um grupo
acostumado às perseguições, mas a coisa não parou por aí. Constantino passou a
conceder ao Cristianismo muitos dos privilégios que o paganismo romano
desfrutava, como que incentivando a cristianização do império. Não apenas as
igrejas e propriedades cristãs confiscadas na perseguição de Diocleciano voltavam
aos seus donos originais, mas os sacerdotes cristãos passavam a ser sustentados
pelo Estado, assim como eram os sacerdotes pagãos.
Além disso,
Constantino aliviou os impostos sobre igrejas e propriedades cristãs, adotou a
cruz como símbolo oficial nos escudos dos soldados, convocou concílios para resolver
disputas teológicas, criou tribunais eclesiásticos cristãos, reconheceu o
domingo como o dia de descanso e implantou igrejas nos melhores terrenos da
nova capital do império, Constantinopla, a nova e luxuosa cidade construída em
sua homenagem. A «nova Roma», como a cidade passou a ser chamada, seguiria
sendo uma das mais ricas do mundo por toda a Idade Média, e seu patriarca foi
elevado ao mesmo status do bispo de Roma, da antiga capital. De forma rápida e impressionante,
o Cristianismo passava de religião perseguida para privilegiada.
No entanto,
muitos se perguntam se essa conversão foi realmente sincera. Para começar, Constantino
pouco se diferenciava na forma de governar em relação aos seus predecessores. Sobre
ele pairam as acusações de ter ordenado o assassinato de seu cunhado Licínio,
de seu filho primogênito e de uma de suas esposas, alegadamente pelos crimes de
traição e conspiração, mas na verdade como um meio de se consolidar no poder (o
que não impediu a Igreja Ortodoxa de canonizá-lo). O próprio Constantino só se
tornou imperador através de um golpe, uma vez que a sucessão legal recaía em seu
oponente Magêncio (o mesmo da batalha da cruz), de acordo com o direito de
sucessão deixado por Galério.
Constantino é
frequentemente descrito como um imperador de pavio curto e temperamento
difícil, irando-se constantemente e agindo como um tirano. De fato, apesar de
Constantino ter caído nas graças dos cristãos medievais pelo seu favor à Igreja,
ele era visto por muitos em sua época como um déspota, à semelhança de outros
tantos que ocuparam o trono de Roma. Além disso, um dia antes de morrer ele fez
um sacrifício a Zeus, e jamais abandonou o título pagão de pontifex maximus,
mais tarde adotado também pelos papas. Ao que parece, Constantino tinha mesmo
boas razões para retardar o batismo o máximo que pudesse!
Diante disso,
há quem pense que a conversão de Constantino foi um golpe estratégico na
religião cristã – algo parecido com o ditado “se não podes com eles, junte-se a
eles”. Constantino teria percebido que a estratégia de seus antecessores era
vã, uma vez que os cristãos continuavam crescendo apesar das perseguições. Se o
paganismo não podia derrotar o Cristianismo, o jeito era “paganizar” o
Cristianismo, moldando-o de modo a torná-lo aceitável aos pagãos. Essa tese
também não responde a tudo, já que grande parte do paganismo que foi invadindo
a Igreja não entrou da noite pro dia (algumas ainda levaram séculos).
Não foi senão
com Teodósio I, que alçou o Cristianismo à posição de religião oficial do
império em 380 d.C através do Édito de Tessalônica, que as grandes massas de
pagãos “converteu-se” ao Cristianismo por livre e espontânea pressão, uma vez
que o paganismo caíra na ilegalidade (algo bastante irônico, já que no período
anterior era o inverso que acontecia).
E como não se
muda uma cultura inteira da noite pro dia – muito menos com quem se converte à
força –, muitos dos costumes pagãos passaram a fazer parte da rotina do povo
cristão, ainda que inicialmente reprovado pelas autoridades eclesiásticas
(embora nem elas fossem um grande exemplo, já que parte significativa da
hierarquia antiga havia perdido a vida nas perseguições de Diocleciano e
Galério, e boa parte da hierarquia que a substituiu veio dos conversos do
paganismo).
Assim como no
panteão romano de deuses havia um deus do amor, um deus da paz, um deus da
guerra e assim por diante, começou a nascer no Cristianismo a ideia de um
“santo” responsável por cada uma destas coisas, e muitas outras categorias.
Assim como muitas cidades romanas tinham um deus específico para elas, também
no meio cristão foram surgindo “santos padroeiros” para cada cidade. Os pagãos
tinham por costume adorar Ísis, deusa-mãe do Egito, chamada de “rainha dos
céus” e representada por uma imagem de uma mãe amamentando seu filho pequeno. A
multidão de pagãos “convertidos” logo a associou à figura de Maria, a mãe de
Jesus, e o culto mariano começou a ganhar corpo.
Epifânio
(310-403), bispo cristão que viveu nessa época, testemunhou com os próprios
olhos a corrupção do Cristianismo. Indignado com o culto que se prestava à
“rainha dos céus”, ele escreveu:
“Não
se deve honrar os santos além do seu mérito, que Deus é aquele a quem devemos
servir. A Virgem não foi proposta à nossa adoração, porque ela própria adorou
aquele que segundo a carne nasceu dela. Ninguém, pois, adore Maria. Só a Deus
Pai, Filho e Espírito Santo pertence este mistério, e não a qualquer homem ou
mulher. Por conseguinte, cessem certas mulheres néscias de perturbar a Igreja,
deixem de dizer: ‘Nós honramos a Rainha do céu', é por isso que com estes
discursos e com o oferecer-lhe os seus bolos, cumprem o que foi dantes
anunciado: 'Alguns apostatarão da fé, dando-se a espíritos sedutores e às
doutrinas dos demônios'. Não, este erro do povo antigo não prevalecerá sobre nós,
para nos fazer afastar do Deus vivo e adorar as criaturas”
(Haeres, Livro III, 79)
Primeiro
Epifânio condena a adoração a Maria, e em seguida ordena que as mulheres cessem
de chamá-la de “rainha do céu”, o mesmo título pagão ostentado por Ísis. Para
ele estava claro que chamar a mãe de Jesus de “rainha do céu” extrapolava o
limite da honra e entrava no perigoso campo da idolatria, a qual só se
aprofundou com o passar do tempo. A despeito da advertência de Epifânio, o
culto à “rainha dos céus” se desenvolveu, a ponto de o papa Pio XII em sua encíclica
“A Rainha do Céu” (1954) declarar Maria a «majestosa soberana e Rainha da
Igreja» e a «rainha de todas as criaturas e de todo o universo», e de São
Bernardino de Siena (1380-1444) referir-se a ela como a «Rainha do mundo e de
todas as criaturas», razão pela qual «ao império de Maria todos estão sujeitos,
até o próprio Deus».
Na clássica
obra “As Glórias de Maria”, de Santo Afonso de Ligório (1696-1787), é
expressamente dito que «é tributada ao Filho e ao Rei toda a honra que se
presta à Mãe e Rainha» (p. 131), uma vez que «estão sujeitos ao domínio de
Maria os anjos, os homens e todas as coisas do céu e da terra» (p. 35). Nessa
mesma obra Maria é chamada de toda-poderosa, salvadora da humanidade,
co-redentora, porta do céu e escada do Paraíso, além de nos surpreender com uma
declaração ousada e chocante: «Muitas coisas se pedem a Deus, e não se
alcançam. Pedem-se a Maria, e conseguem-se» (p. 118).
Outra
consequência da paganização do Cristianismo foi o crescente culto às imagens.
Orígenes, Justino, Aristides, Atenágoras, Irineu, Tertuliano, Cipriano,
Lactâncio e praticamente todos os Pais da Igreja pré-nicenos deixaram claro que
no culto cristão não havia imagens, algo que os pagãos não podiam aceitar, pois
toda a adoração que conheciam consistia em objetos tangíveis. Os templos pagãos
se transformaram em templos cristãos, mas suas imagens foram convenientemente
mantidas, cujos nomes foram apenas modificados. Isso escandalizou cristãos
tradicionais como Epifânio, que manifestou seu horror ao se deparar com uma
imagem numa igreja cristã:
“Eu
encontrei um véu suspenso nas portas desta mesma igreja, o qual estava colorido
e pintado, ele tinha uma imagem, pode ser a imagem de Cristo ou de algum santo;
eu não recordo mais quem ela representava. Eu, pois, tendo visto este
sacrilégio; que numa igreja de Cristo, contra a autoridade das Escrituras, a
imagem de um homem estava suspensa, rasguei aquele véu”
É evidente
que essas mudanças não ocorreram ao mesmo tempo em todo lugar, nem foram
aceitas sem certa resistência. No Oriente, por exemplo, houve resistência a
muitas dessas inovações, e até hoje a Igreja Ortodoxa se recusa a usar imagens
de escultura e desconhece doutrinas como purgatório, limbo, indulgências, imaculada
conceição, celibato obrigatório ou infalibilidade papal. Outras, como o culto
mariano, receberam uma ênfase bem menor, quando comparado ao Ocidente. Mas
talvez o mais nocivo de todos os efeitos que a Cristianização do paganismo (ou a
paganização do Cristianismo, à sua escolha) causou foi a perigosa mistura entre
política e religião.
No antigo
paganismo romano do qual todos os imperadores antes de Constantino fizeram
parte, o imperador era ao mesmo tempo uma autoridade política e religiosa – era
o chefe político e militar do império, mas também o sumo sacerdote do paganismo
(algo análogo ao que os faraós eram no Egito antigo). Por mais que todos os
cristãos pré-nicenos fossem vigorosamente contra essa união entre Igreja e
Estado, Constantino quis aplicar ao Cristianismo a mesma relação com o Estado
que caracterizava o paganismo romano, e a prova disso é que ele convocou e
presidiu o Concílio de Niceia (que, não por coincidência, ocorreu poucos anos após
sua “conversão”).
Se você não
consegue perceber o quão perturbador é isso, imagine se o Bolsonaro ou o Lula
(quando era presidente) convocasse um concílio cristão que trata exclusivamente
de questões religiosas e presidisse esse concílio como se fosse o chefe da
Igreja. Eu não sei você, mas eu acharia um tanto bizarro, pra dizer o mínimo. Não
apenas bizarro, mas constrangedor e revoltante – algo que os crentes da época
relativizaram, considerando que era melhor aceitar isso do que continuar sofrendo
as perseguições selvagens que vinham sofrendo. Porém, essa união entre Igreja e
Estado preparou o terreno para a Inquisição, as cruzadas, a caça às bruxas, as
disputas sobre as investiduras e toda uma série de querelas que desgastaram tanto
a Igreja como o Estado, e criaram inúmeras vítimas.
Pior do que
isso, a concepção de uma autoridade político-religiosa preparou o terreno para
a ascensão do papado, especialmente depois que o império romano foi tomado
pelos bárbaros e já não existia mais a figura do imperador. Do antigo império,
restava agora apenas a Igreja, e nenhuma igreja local era mais forte no
Ocidente que a do bispo de Roma. Ambiciosos pelo domínio do mundo, os papas
lutaram por conquistas territoriais, exigiram a submissão de imperadores e
reis, instituíram uma teocracia nos Estados Pontifícios e puniram com
severidade qualquer sinal de dissidência religiosa – ironicamente, com a mesma
forma de punição que o antigo império usava para executar os cristãos: a
fogueira.
A Igreja
passou de perseguida a perseguidora, esquecendo-se de suas raízes. Enquanto
combatida pelo Estado resistia heroicamente; agora, aliada ao Estado, agia como
o mesmo e até pior. Ninguém melhor que o historiador católico Paul Johnson
expôs esse dilema ao perguntar se foi o império que se rendeu ao Cristianismo,
ou o Cristianismo que se prostituiu com o império.
*Trecho extraído de meu livro "Os 100 Maiores Acontecimentos da História do Cristianismo", que você pode comprar ou baixar gratuitamente na página dos livros.
Por Cristo e por Seu Reino,
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