LIVROS DE TEÓFILO A AUTÓLICO
(Teófilo de
Antioquia)
LIVRO 1
1 Boca eloquente e dicção agradável fornecem prazer e glória fútil
de louvor para os pobres homens que têm o entendimento corrompido; o amante da
verdade, porém, não se prende a palavras afetadas, mas examina a eficácia da
palavra, o que ela é e de que tipo é. Pois bem, meu amigo: tu me causaste
estupor com palavras vãs, vangloriando-te dos teus deuses de pedra e madeira
cinzelados e fundidos, esculpidos e pintados, deuses que não vêem nem ouvem (de
fato, são imagens e obras de mãos humanas); além disso, tu também me chamas
zombeteiramente de cristão, como se eu portasse um nome infame. Quanto a mim,
confesso que sou cristão e trago esse nome grato a Deus, e espero ser útil ao
mesmo Deus. Não há fundamento, para supores que seja difícil ter o nome de
Deus; talvez porque, sendo inútil para Deus, tu pensas dessa maneira sobre
Deus.
2 Mas se tu me dizes: "Mostra-me teu Deus", eu te poderia
responder: "Mostra-me teu homem, e eu te mostrarei o meu Deus".
Mostra-me, portanto, os olhos de tua alma que vejam e os ouvidos do teu coração
que ouçam. Com efeito, aqueles que vêem com os olhos do corpo observam aquilo
que se passa na vida e sobre a terra, discernindo juntamente as diferenças
entre a luz e a escuridão, entre o branco e o negro, entre o disforme e a bela
forma, entre o que é harmonioso, bem proporcionado e o que é desarmonioso e
desproporcional, desmesurado e truncado; a mesma coisa para aquilo que cai sob
o sentido dos ouvidos: sons agudos, graves e suaves. Acontece do mesmo modo com
os ouvidos do coração e os olhos da alma aos quais é possível perceber Deus. De
fato, Deus é experimentado por aqueles que podem vê-lo, desde que os olhos de
sua alma estejam abertos. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não
percebem a luz do sol; e não é porque os cegos não vêem que a luz do sol deixa
de brilhar, mas os cegos devem buscar a causa em si mesmos e em seus olhos.
Do mesmo modo, Ó homem, tu tens
os olhos de tua alma obscurecidos por tuas faltas e tuas más ações. O homem
deve ter alma pura como espelho brilhante. Quando o espelho fica enferrujado,
não se pode mais ver a face do homem no espelho; assim também, quando há falta
no homem, esse homem já não pode contemplar a Deus. Mostra-te a ti mesmo, se
não és adúltero, se não és devasso se não és pederasta, se não és ladrão, se
não és explorador, se não és colérico, se não és invejoso, se não és impostor,
se não és soberbo, se não és brutal, se não és amante do dinheiro, se não
desobedeces a teus pais, se não vendes teus filhos. Com efeito, Deus não se
manifesta àqueles que cometem essas faltas, a não ser que antes se purifiquem
de toda mancha. Por isso, tudo é obscuro para ti, como a bandagem que se coloca
no olho por não poder contemplar a luz do sol. Assim também, ó homem, tuas
impiedades projetam sobre ti trevas e tu não podes ver a Deus.
3 Então me dirás: "Tu que vês, descreve-me o aspecto de
Deus". Escuta, homem: o aspecto de Deus é inefável, inexprimível, e não
pode ser visto com os olhos carnais. Por sua glória, ele é sem limite,
inigualável por sua grandeza, acima de qualquer idéia por sua altura,
incomensurável por sua força, sem igual por sua sabedoria, inimitável por sua
bondade, indizível por sua benevolência. Se eu o chamo Luz, é uma de suas
criaturas que nomeio; se eu o chamo Verbo, nomeio o seu princípio; seu eu o
chamo Razão, nomeio a sua inteligência; se eu o chamo Espírito, nomeio a sua
respiração; se eu o chamo Sabedoria, nomeio o que ele gera; se eu o chamo
Força, nomeio o seu poder; se eu o chamo Potência, nomeio a sua atividade; se
eu o chamo Providência, nomeio a sua bondade; se eu o chamo Soberania, nomeio a
sua glória; seu eu o chamo Senhor, digo que é juiz; se eu o chamo Juiz, digo
que é justo; se eu o chamo Pai, digo que é tudo; se o chamo Fogo, nomeio a sua
ira. Tu me dirás: "Deus fica irado?" Eu respondo: Sim, ele se ira
contra aqueles cujas ações são más; no entanto, ele é bom, propício e
misericordioso para com aqueles que o amam e o temem; ele é o educador dos
fiéis, o pai dos justos, o juiz e castigador dos ímpios.
4 Ele não tem princípio, porque não foi gerado; ele é imutável,
porque é imortal. É chamado Deus porque fundou tudo sobre sua própria
estabilidade, e ainda através de théein. Théein significa correr, ser ativo,
trabalhar, alimentar, prover, governar, dar vida a tudo. Ele é Senhor, porque
exerce o senhorio sobre tudo; Pai, porque existe antes de tudo; Fundador e
Criador, porque ele criou e fez tudo; Altíssimo, porque ele é superior a todas
as coisas; Onipotente, porque ele domina e envolve tudo. As alturas dos céus,
as profundezas dos abismos, e os confins da terra estão em sua mão; não há
lugar onde esteja suspensa a sua ação. Os céus são obra sua; a terra é
realização sua; o mar é criação sua; o homem é figura e imagem sua; o sol, a
lua e as estrelas são elementos seus, feitos para medir sinais, medida de
tempo, dias e anos, para utilidade e serviço dos homens. E Deus fez tudo do
não-ser para o ser, a fim de que por suas obras seja conhecida e compreendida a
sua grandeza.
5 Do mesmo modo como a alma não pode ser vista no homem, pois ela é
invisível para os homens, mas pode ser imaginada por causa dos movimentos do
corpo, assim também acontece com Deus: ele não pode ser visto pelos olhos
humanos, mas pode ser visto e imaginado pela sua providência e pelas suas
obras. Quando alguém vê no mar um navio com todo o seu apetrecho, que singra e
se aproxima do porto, é evidente que pensa que há um piloto que o dirige; do
mesmo modo, deve-se pensar que existe um Deus, que governa tudo, embora os
olhos carnais não o vejam, porque ele não é circunscrito. Se o sol, que é o
menor elemento existente, não pode ser fixado pelo olhar humano, pois é muito
quente e muito forte, como não será muito mais impossível ao homem mortal ver face
a face a glória inefável de Deus? A romã possui uma casca que a envolve; dentro
tem muitas repartições ou casinhas separadas por membranas e, finalmente,
muitos grãos aí alojados. Do mesmo modo, toda a criação está envolvida pelo
sopro de Deus, e esse sopro que a envolve está com a criação pela mão de Deus.
Assim como o grão da romã, do
interior de seu habitáculo, não pode ver o que está fora da casca, pois está lá
dentro, também o homem, que é envolvido com toda a criação pela mão de Deus,
não pode contemplar a Deus. Além disso, crê-se que um soberano terrestre
existe, embora ninguém o veja: suas leis, seus editos, seus funcionários, suas
autoridades, suas estátuas o tornam conhecido. E tu não queres reconhecer Deus
pelas suas obras e manifestações de seu poder?
6 Ó homem, considera, portanto, as obras de Deus: a variedade das
estações segundo os tempos, a mudança dos ares, o curso bem regrado dos
elementos, a marcha também ordenada dos dias e das noites, dos meses e dos
anos; a variada formosura das sementes, das plantas e dos frutos; a grande
diversidade de criações: quadrúpedes e aves, répteis e peixes, seja de água
doce, seja do mar; o instinto dado aos mesmos animais para gerar e criar, não
para sua própria utilidade, mas para que o homem aproveite; a providência com
que Deus prepara o alimento para toda carne, a submissão à humanidade que ele
impôs a todas as coisas; as torrentes das fontes doces e dos rios perenes, o
aparecimento oportuno do orvalho, das chuvas e das tempestades que acontecem
segundo os tempos; o movimento tão variado dos elementos celestes, o luzeiro da
manhã que surge para anunciar a vinda do grande astro, a conjunção da Plêiade e
do Órion, o Arturo e o coro dos outros astros que circulam na abóbada celeste,
aos quais a infinita sabedoria de Deus pôs nomes próprios.
É unicamente esse Deus que tirou
a luz das trevas, que tira a luz de seus depósitos, que conserva os depósitos
do vento, os reservatórios do abismo, os limites dos mares, os depósitos das
neves e granizos, que junta as águas nos reservatórios do abismo ejunta as
trevas em seus depósitos, tira a luz doce, desejada e grata, de seus depósitos,
faz subir as nuvens da extremidade da terra, multiplica os relâmpagos para
chover, envia o trovão para infundir medo, anuncia de antemão o seu estrondo
por meio do relâmpago, para que a alma não sofra emoção súbita que a deixaria
inanimada, e ainda modera a força do relâmpago que vem dos céus, para que não
abrase a terra. De fato, se o relâmpago desenvolvesse todo o seu poder,
abrasaria a terra e igualmente o trovão transtornaria tudo o que há nela.
7 Esse é o meu Deus, Senhor do universo, o Único que estendeu os
céus e estabeleceu a largura da terra sob o céu, que perturba a profundeza do
mar e faz ressoar suas ondas, que domina a sua força e acalma a agitação de
suas ondas, que alicerçou a terra sobre as águas e deu seu espírito que a alimenta,
cujo sopro tudo vivifica e, se ele o retivesse, tudo desfaleceria. Esse sopro,
ó homem, faz a tua voz; tu respiras o espírito dele, e tu não o conheces. Isso
acontece por causa da cegueira de tua alma e endurecimento do teu coração. Mas,
se quiseres, podes curar-te. Coloca-te nas mãos do médico e ele operará os
olhos de tua alma e do teu coração. Quem é esse médico? É Deus que cura e
vivifica através do Verbo e da Sabedoria. Deus fez tudo a través do seu Verbo e
da sua Sabedoria.
Por seu Verbo foram estabelecidos
os céus e por seu Espírito toda a força deles. Sua Sabedoria é poderosíssima.
Por sua Sabedoria, Deus colocou os alicerces da terra, por sua inteligência
dispôs os céus, em sua prudência os abismos se abriram e as nuvens derramaram o
orvalho. Fé e visão Ó homem, se compreenderes isso, e viveres de maneira pura,
piedosa e justa, poderás ver a Deus. Antes de tudo, porém, entrem em teu
coração a fé e o temor de Deus, e então compreenderás isso. Quando depuseres a
mortalidade e te revestires da incorruptibilidade, verás a Deus de maneira
digna. Com efeito, Deus ressuscitará a tua carne, imortal, juntamente com tua
alma. Então, tornado imortal, verás o imortal, contanto que agora tenhas fé
nele. Então reconhecerás que falaste injustamente contra ele.
8 Tu, porém, não crês que os mortos ressuscitam. Quando isso
acontecer, então crerás, queiras ou não. E essa crença será considerada
incredulidade, se não creres desde agora. Mas, por que não crês? Não sabes que
a fé vai à frente de todas as coisas? De fato, qual lavrador pode colher, se
antes não confia a semente à terra? Ou quem pode atravessar ornar, se antes não
se confia à embarcação e ao piloto? Qual doente pode curar-se, se antes não se
confia ao médico? Qual arte ou ciência pode alguém aprender, se antes não se
entrega e se confia ao mestre? Portanto, se o lavrador crê na terra, o viajante
no navio, o doente no médico, por que tu não queres confiar-te a Deus, do qual
recebeste tantos dons? O primeiro dom é te haver tirado do nada para o ser. Se
houve momento em que nem teu pai, nem tua mãe existiam, muito menos existias
tu. Ele te plasmou de uma substância úmida e pequena e de uma pequenina gota,
que também não existia antes, e finalmente te introduziu neste mundo. Além
disso, crês que as imagens fabricadas por homens são deuses e que operam
prodígios, e não crês que Deus, que te fez, possa novamente tornar a fazer-te?
9 Os nomes dos deuses, aos quais dizes cultuar, são nomes de homens
mortos. Quem eram esses e que valiam? Não se diz que Cronos era comedor de
crianças e que devorava seus próprios filhos? Se falas de Zeus, filho dele,
conheças bem sua vida e prodígios. Primeiramente, foi alimentado no Ida por uma
cabra; depois, matando-a e esfolando-a, da pele fez para si, conforme as
fábulas, uma vestimenta. Seus outros feitos, como, por exemplo, seu casamento
com sua irmã, seus adultérios e corrupções de rapazes, Homero e os outros
poetas os cantam melhor do que eu. Além disso, para que fazer a lista de seus
filhos, um Héracles que se queima vivo; um Dioniso embriagado e louco; um ApoIo
que tem medo de Aquiles e dele foge, e depois se enamora de Dafne e não fica
sabendo da morte de Jacinto; uma Afrodite ferida; um Ares que é perdição dos
mortais e, finalmente, o sangue que escorre de todos esses pretensos deuses? E
isso tudo ainda é moderado, quando vemos um deus esquartejado que chamam de
Osíris, do qual a cada ano se celebram mistérios, como se se perdesse e se
encontrasse e fosse procurado membro por membro. Não se sabe se foi perdido,
nem se mostra se foi achado! Por que devo falar de Átis mutilado, ou de Adônis,
que anda errante pela selva, que caça e é ferido por um javali, ou de Asclépio
fulminado, ou de Serápis, que vai fugitivo de Sínope para Alexandria, ou da
frígia Artemis, tonta, fugitiva, assassina, caçadora e enamorada de Eudimião?
Não somos nós que dizemos tudo isso, mas os vossos escritores e poetas que os
apregoam.
10 Para que também fazer o catálogo da multidão de animais que os
egípcios cultuam? Répteis e bestas, feras e aves, peixes das águas, e até os
banhos dos pés e os ruídos vergonhosos. Se me falas dos gregos e das outras
nações, elas cultuam pedras, madeiras e outras matérias, como dissemos antes,
que são representações de homens mortos. Com efeito, sabemos que Fídias fez em
Pisa o Zeus Olímpico para os éleos e a Atena da Acrópole para os atenienses. E
agora, eu pergunto também a ti, homem: Quantos Zeus existem? Em primeiro lugar,
chama-se Zeus o olímpico; depois, há um Zeus latino, um Zeus cássio, um Zeus
fulminador, um Zeus Propator, um Zeus noturno, um Zeus defensor da cidade, um
Zeus capitolino.
E ainda o Zeus, filho de Cronos,
que foi rei dos cretenses e tem sua sepultura em Creta. Quanto aos outros, não
foram sequer considerados dignos de sepultura. Falar-me-ás da mãe dos pretensos
deuses? Deus me livre nomear com minha boca suas ações, pois não nos é lícito
sequer nomear tais coisas, ou as ações com que seus servidores lhe prestam
culto e as contribuições e tributos que eles e seus filhos pagam ao imperador.
Não são deuses, mas ídolos, como anteriormente dissemos, obras das mãos dos
homens e demônios impuros. Que aqueles que os fabricam se tornem como eles e
aqueles que neles põem a sua confiança.
11 Por isso, eu honraria melhor ao imperador, embora não o
adorasse, mas rogasse por ele. Adorar, eu adoro apenas ao Deus real e
verdadeiramente Deus, pois sei que o imperador foi criado por ele. Então me
perguntarás: "Por que não adoras o imperador?" Porque não foi
constituído para ser adorado, mas para que se lhe tribute a legítima honra. Com
efeito, ele não é Deus, mas homem estabelecido por Deus, não para ser adorado,
mas para julgar com justiça. De certo modo, Deus lhe confiou uma administração
e assim como ele próprio não quer que se chame de imperadores os que ele
estabeleceu sob o seu poder, pois o nome "imperador" é particular
seu, e a ninguém é permitido chamar-se dessa forma, da mesma forma a ninguém é
lícito adorar senão a Deus. Portanto, ó homem, estás completamente equivocado
em tudo. Honra ao imperador por tua adesão a ele, submetendo-te a ele, orando
por ele. Fazendo isso, realizarás a vontade de Deus. A lei divina diz:
"Meu filho, honra a Deus e ao rei, e não sejas desobediente a nenhum dos
dois, pois eles se vingarão repentinamente de seus inimigos".
12 Quanto ao fato de zombares de mim, chamando-me cristão, não
sabes o que dizes. Primeiramente, o ungido é agradável e útil, e não tem nada
de ridículo. Com efeito, qual navio pode ser útil e salvo se antes não for
ungido? Que torre ou casa possui bela forma ou é útil se antes não for ungida?
Qual homem, entrando no mundo ou indo ao combate, não se unge com azeite? Qual
obra ou ornato pode ter bela aparência, se não é ungida e não se torna
brilhante? Por fim, todo o ar e toda a terra sob o céu são de certo modo
ungidos pela luz e pelo vento. E tu não queres ser ungido com o óleo de Deus?
Nós nos chamamos cristãos porque nos ungimos com o óleo de Deus.
13 Retornemos à tua negação da ressurreição dos mortos. Tu dizes:
"Mostra-me apenas um morto que tenha ressuscitado e eu acreditarei."
Em primeiro lugar, o que há de maravilhoso em creres naquilo que viste
acontecer? Por outro lado, crês que Héracles, depois de queimar-se vivo, ainda
vive, e que Asclépio, que foi fulminado, ressuscitou. E não crês no que Deus te
diz? Talvez, se te mostrasse um morto ressuscitado e vivo, não acreditarias.
Ora, Deus te mostra muitos indícios, para que creias nele. Se queres, considera
a morte das estações, dos dias e das noites, como morrem e ressuscitam. Vê. Não
há também uma ressurreição para as sementes e frutos, e isso para a utilidade
dos homens? Assim, por exemplo, um grão de trigo ou de qualquer outra planta,
uma vez jogado na terra, primeiro morre e se desfaz, depois ressuscita e se
transforma em espiga. Do mesmo modo, segundo a ordenação de Deus, a natureza
das árvores e plantas não produz, conforme os tempos, os seus frutos a partir
do oculto e invisível? Ainda mais: às vezes um pardal ou outro pássaro qualquer
engole a semente de uma pereira, de uma figueira ou de outra árvore, depois voa
para um monte pedregoso ou sobre um túmulo, aí defeca e a semente que fora
antes tragada e que passara por tão grande calor, retorna e se transforma em
uma árvore.
A sabedoria de Deus realiza tudo
isso para demonstrar, mesmo por esses exemplos, que ele é Deus poderoso para
realizar a universal ressurreição de todos os homens. Se queres contemplar um
espetáculo mais maravilhoso, que acontece para demonstrar não a ressurreição de
coisas terrenas, mas das celestes, considera a ressurreição da lua, que
acontece a cada mês, como ela se consome, morre e ressuscita novamente. Escuta
ainda: a obra da ressurreição se realiza em ti mesmo, embora tu, ó homem, a
desconheças. Provavelmente alguma vez, ficando doente, perdeste tuas carnes,
tuas forças e aparência; ao recobrar a saúde, por misericórdia de Deus,
recuperaste novamente teu corpo, tua força e tua aparência. E como não sabes
para onde foram tuas carnes ao desvanecer-se, também não sabes como se formaram
e de onde vieram. Tu dirás: "Dos alimentos e dos líquidos transformados em
sangue". Muito bem! Isso, porém, também é obra de Deus, que assim dispôs,
obra dele e de nenhum outro.
14 Portanto, não sejas incrédulo, mas acredita. Eu também não
acreditava que isso existisse, mas agora, depois de refletir muito, eu creio;
ao mesmo tempo, li as Sagradas Escrituras dos santos profetas, os quais,
inspirados pelo Espírtio de Deus, predisseram o passado como aconteceu, o
presente tal como acontece e o futuro tal como se cumprirá. Por isso, tendo a
prova das coisas acontecidas depois de terem sido preditas não sou incrédulo,
mas creio e obedeço a Deus. Eu te peço: submete-te também a ele, para que, não
crendo agora, forçosamente tenhas que crer mais tarde em tormentos eternos.
Exortação final Esses tormentos foram preditos pelos profetas, e os poetas e
filósofos, posteriores a eles, os imitaram a partir das Sagradas Escrituras,
para dar autoridade aos seus ensinamentos. Desse modo, eles também falaram
antecipadamente dos castigos que recairão sobre os ímpios e incrédulos, para
que ficassem testemunhados para todos e ninguém pudesse dizer: "Não
ouvimos falar disso, nem sabemos".
Se queres, lê tu também com
interesse as Escrituras dos profetas e elas te guiarão com mais clareza para
escapares dos catigos eternos e alcançares os bens eternos de Deus. De fato,
ele, que nos deu a boca para falar, que formou o ouvido para ouvir e fez os
olhos para ver, examinará tudo e julgará com justiça, dando a cada um segundo
os próprios méritos. Para aqueles que, segundo suas forças, buscam a
incorruptibilidade através das boas obras, ele dará a vida eterna, a alegria, a
paz, o descanso e uma multidão de bens, que nenhum olho viu, nenhum ouvido e
nenhum coração humano sentiu; mas aos incrédulos, aos zombadores e aos que
desobedecem à verdade e seguem a injustiça, depois de manchar-se com
adultérios, fornicações, pederastias, avarezas e sacrílegas idolatrias, para
esses, existirá a ira e a indignação, a tribulação e a angústia, e, por fim o
fogo eterno se apoderará deles. Amigo, tu replicaste: "Mostra-me teu
Deus". Pois bem: esse é o meu Deus, e te aconselho que o temas e creias
nele.
LIVRO 2
1 Excelente Autólico, há dias tivemos uma conversa, na qual tu me
perguntaste qual era o meu Deus. Expus brevemente minha religião e tu prestaste
atenção ao meu discurso. Despedindo-nos, fomos para casa na melhor amizade,
embora no começo me tenhas tratado com dureza. Sabes e lembras que consideravas
loucura o nosso discurso. Depois disso tu me convidas... Mesmo sendo novato na
arte de falar, quero também agora, através deste escrito, demonstrar-te de modo
mais completo a inutilidade do teu afã e a inanidade da religião que te retém;
esclarecerei a verdade através de algumas histórias do teu próprio grupo, as
quais lês, mas que talvez ainda não tenhas entendido.
2 Com efeito, parece-me ridículo que cortadores de pedra, oleiros,
pintores e fundidores modelem, pintem, esculpam, fundam e fabriquem deuses, os
quais, enquanto estão nas mãos dos artífices, não são de maneira alguma
apreciados; contudo, quando alguém os compra e os expõe no que chamam de templo
ou em alguma casa, então são adorados não somente por aqueles que os compraram,
mas aqueles mesmos que os fabricaram e venderam acorrem com grande fervor, com
aparato de sacrificios e libações para adorá-los, considerando-os deuses, sem
levar em conta que continuam sendo as mesmas coisas por eles fabricadas: pedra,
bronze, madeira, cor ou qualquer outro material. Algo parecido acontece
convosco ao ler as histórias e genealogias dos chamados deuses. Enquanto ledes
seus nascimentos, os considerais como homens; mas depois lhes dais nomes de
deuses e lhes prestais culto, sem perceber nem compreender que tais como lestes
que nasceram, tais de fato existiam.
3 Ao menos os deuses antigos, se é certo que nasceram, podia-se ver
que tinham uma longa descendência. Agora, porém, como se pode mostrar a
descendência dos deuses? Com efeito, se antes geravam e nasciam, é evidente que
agora também teriam que nascer deuses gerados. Do contrário, ter-se-á que
considerá-los bem fracos, seja porque se tornaram velhos e por isso não geram,
seja porque morreram e não permanece nenhum rastro deles. De fato, se os deuses
antes geravam, teriam que gerar também agora, como vemos que os homens geram.
Além disso, os deuses teriam que ser mais numerosos do que os homens, como diz
a Sibila: "Se os deuses geram e continuam imortais, os deuses nascidos
seriam em maior número que os homens, e já não haveria lugar para os mortais
ficarem".
Com efeito, se os filhos gerados
pelos homens, que são mortais e de vida curta, existem até o presente e não
cessam de nascer outros homens, e por isso as cidades e aldeias se multiplicam
e até os campos são habitados, quanto mais os deuses que, segundo os poetas,
não morrem, não deveriam gerar e nascer, de acordo com o que dizeis a respeito
do nascimento ou geração dos deuses? Ainda mais: Como é que o monte chamado
Olimpo era antes habitado por deuses e agora se encontra deserto? Por que antes
Zeus morava no monte Ida, e se sabia que ele morava ali através de Homero e
outros poetas, e agora não se sabe onde anda? Como é que não estava em toda
parte, mas se encontrava em um ponto determinado da terra?
Ou ele não se interessava pelo
resto, ou não era capaz de estar em toda parte e prover tudo. Se ele estava,
por exemplo, no Oriente, não estava no Ocidente. No entanto, é próprio do Deus
altíssimo e onipotente e verdadeiro Deus não só estar em toda parte, mas também
ver e ouvir tudo e não ser contido por nenhum lugar. Do contrário, o lugar que
o contivesse seria maior do que ele, pois o continente é sempre maior do que o
contido. De fato, Deus não é contido, mas é o lugar de todas as coisas. Por que
Zeus abandonou o Ida? Morreu ou não gostava mais desse monte? Então para onde
foi? Para os céus? Dejeito nenhum. Dir-me-ás que foi para Creta? Sim, ali se
mostra até hoje o seu sepulcro. Também podes dizer que partiu para Pisa, onde
até hoje é enaltecido pelas mãos de Fídias. Passemos, porém, aos escritos dos
filósofos e poetas.
4 Alguns do Pórtico, ou estóicos, chegam a negar totalmente que
Deus existe ou, se existe, afirmam que Deus não se preocupa com ninguém, mas
consigo mesmo. E nisso se manifesta totalmente a insensatez de Epicuro e
Crisipo. Outros dizem que todo o universo se rege pelo acaso, que o mundo é
incriado e a natureza é eterna, e até se atreveram a dizer que não existe
absolutamente providência de Deus, mas que o único Deus é a consciência de cada
dia. Outros estabelecem como dogma que Deus é o espírito que penetra tudo.
Quanto a Platão e sua escola, certamente confessam que Deus é incriado e Pai e
Criador do universo; em seguida, porém, supõem que a matéria é incriada como
Deus e que ela tem a mesma idade de Deus. Mas se, conforme os platônicos, Deus
é incriado e a matéria também o é, o Criador de todas as coisas já não é Deus,
nem, seguindo-os, se percebe a monarquia ou unicidade de Deus.
Além disso, como Deus é imutável
por ser incriado, se também a matéria fosse incriada seria pelo mesmo motivo
imutável e parelha de Deus. Com efeito, o criado é variável e mutável; o
incriado é invariável e imutável. E o que de maravilhoso haveria se Deus
tivesse feito o mundo de matéria preexistente? Também um artífice humano,
tomando uma matéria qualquer, faz dela o que quer. Mas o poder de Deus se
manifesta em fazer o que quer do que não existe, de modo que ninguém, a não ser
Deus, pode dar alma e movimento. Um homem fabrica uma estátua, mas não pode
infundir razão, alento ou sentido ao que foi feito por ele. Deus, porém, tem
sobre o homem a vantagem de fazer um ser racional, com alento e sentido. Sendo
Deus mais poderoso que o homem nessas coisas, assim também o é em fazer do nada
e ser criador de tudo o que existe, quando ele quiser e como quiser.
5 Assim, a opinião dos filósofos e escritores é contraditória.
Tendo esses feito tais afirmações, o poeta Homero vai por outro caminho para
cantar-nos a origem não só do mundo, mas também dos deuses. Ele diz em algum
lugar: "Ao Oceano, origem dos deuses, e à mãe Tétis, donde se originam os
rios e todo ornar." Na verdade, assim falando, ele não nos apresenta
nenhum Deus, pois quem não sabe que o oceano é água? Ora, se é água, conclui-se
que não é Deus. E se Deus é o criador do universo, como de fato o é, também é
criador da água e dos mares.
Quanto a Hesíodo, ele não só
explicou a origem dos deuses, mas também do próprio mundo. Ele disse que o
mundo foi criado, mas não teve coragem de dizer por quem. Além disso, disse que
são deuses, Cronos e seu filho Zeus, Posêidon e Plutão, e vemos que estes foram
posteriores ao mundo. Conta-nos também como Cronos foi combatido pelo seu
próprio filho Zeus, pois diz o seguinte: "Vencendo seu pai Cronos por sua
própria força; de- pois, devidamente imortal, ordenou tudo e delimitou as
honras".
Depois continua falando das
filhas de Zeus, às quais chama de Musas e diante das quais se apresenta como
suplicante, querendo saber delas de que modo tiveram princípio todas as coisas.
Ele diz: "Salve, filhas de Zeus, dai-me o amável canto. Celebrai a
linhagem dos afortuna-dos imortais, os que existem para sempre, que nasceram da
terra, do céu estrelado, da noite tenebrosa e os que foram criados pelo mar
salgado. Dizei-me como primeiro nasceram os deuses, a terra, os rios e o mar
infinito, que ferve de ondas, os astros brilhantes, o céu estendido lá em cima,
como repartiram a opulência e distribuiram honras, e também como chegaram a
possuir o Olimpo de mil recantos. Dizei-me isso, Musas, que tendes as moradas
olímpicas desde o princípio, e dizei o que existiu primeiro." Todavia,
como as Musas poderiam saber isso se são posteriores ao mundo? Como poderiam
contar isso a Hesíodo, se o pai delas ainda não havia nascido?
6 De certo modo, ele supõe a matéria e a criação do mundo, quando
diz: "Primeiro existiu o Caos e depois a terra de largo seio, assento
firme para sempre de todos os imortais, que ocupam os cumes do Olimpo nevado e
o tenebroso Tártaro, seio da terra de largos caminhos; e foi Eros, o mais belo
dos deuses imortais, que afrouxa os membros e vindo ao coração de todo ser,
homem ou deus, domina a razão e o discreto conselho. O Erebo e a Noite negra
nasceram do Caos: a Terra gerou primeiro aquilo que é semelhante a si, o Céu
estrelado, para que ele lhe servisse como cobertura, e fosse para sempre
assento firme para os afortunados deuses. Gerou as altas montanhas, graciosas
moradas de deusas e das ninfas que habitam pelos montes escarpados. Pariu
também o Mar infecundo, que ferve de ondas, o alto Mar, sem paixão amorosa; mas
depois, em relação com o Céu, pariu o Oceano de profundos turbilhões".
Dizendo tudo isso, nem mesmo
assim declarou por quem foram feitas as coisas. Com efeito, se antes existia o
caos e preexistia certa matéria incriada, quem foi que estabeleceu esta e
depois a ordenou e transformou? Teria sido, por acaso, a matéria, que se
transformou e ordenou a si mesma? De fato, Zeus aparece muito depois, não só da
matéria, mas do mundo e da multidão de homens, e o próprio Crono, seu pai. Ou
não foi antes algo principal que a criou, isto é, Deus que a pôs em ordem? Além
disso, vê que Hesíodo diz apenas bobagens e contradiz a si próprio de mil
maneiras. Com efeito, tendo falado da terra, do céu e do mar, quer que deles
nasçam os deuses e destes nos anuncia alguns homens extraordinários, parentes
dos deuses, a raça dos titãs, dos ciclopes, a multidão dos gigantes e dos
demônios egípcios, ou homens vãos, mencionados por Apolônides, de sobrenome
Horápio, no livro intitulado Semenuthi e noutras histórias suas sobre a
religião e seus reis.
7 Que necessidade tenho de falar dos mitos gregos e de sua
futilidade? Plutão, rei das trevas; Posêidon que se coloca sob o mar e se
abraça com Melanipa, gerando um filho que devora os homens! E o que dizer das
tragédias que os vossos escritores compuseram sobre os filhos de Zeus? Como
nasceram homens e não deuses, eles nos podem traçar sua genealogia. Ai está o
cômico Aristófanes que na sua peça Os pássaros, pondo-se a contar a criação do
mundo, disse que no princípio nasceu um ovo como composição única do mundo:
"Antes de tudo, a de negras asas pariu um ovo". E Sátira, historiador
das famílias alexandrinas, começando por Filopátor, chamado também Ptolomeu,
afirma que este se originou de Dioniso, e daí Ptolomeu deu o primeiro lugar à
tribo dionisíaca.
Sátira, portanto, diz o
seguinte: De Dioniso e Altéia, filha de Téstio, nasceu Dejanira; desta e
Héracles, filho de Zeus, nasceu Hilo; deste nasceu Cleodemo; deste nasceu
Aristômaco; deste nasceu Têmeno; deste nasceu Criso; deste nasceu Marão; deste
ansceu Téstio; deste nasceu Acoos; deste nasceu Cena; deste nasceu Tirimas;
deste nasceu Perdicas; deste nasceu Filipe; deste nasceu Aéropo; deste nasceu
Alceta; deste nasceu Amintas; deste nasceu Bocro; deste nasceu Meleagro; deste
nasceu Arsinoe; desta e de Lagos nasceu Ptolomeu Soter; deste e de Berenice
nasceu Ptolomeu Filadelfo; deste e de Arsinoe nasceu Ptolomeu Evergetes; deste
e de Berenice, filha de Magas, rei de Cirine, nasceu Ptolomeu Filopátor.
Esse é, portanto, o parentesco
entre Dioniso e os reis de Alexandria. Daí também a tribo dionisíaca toma a sua
divisão em famílias: a Altaida, de Altéia, que foi mulher de Dioniso e filha de
Téstio; a Dejanírida, da filha de Dioniso e Altéia, mulher de Héracles, de onde
recebem também seus nomes as famílias que deles descendem; a Ariádnida, da
filha de Minos, mulher de Dioniso, filha enamorada de seu pai, que se uniu com
Dioniso, este sob a forma de marinheiro; a Téstida, de Téstio, o pai de Altéia;
a Toântida, de Toante, filho de Dioniso; a Estafília, de Estáfilo, filho de
Dioniso; a Evênida, de Eunoo, filho de Dioniso; a Marônida, de Marão, filho de
Ariadne e Dioniso. Todos esses foram filhos de Dioniso. Existem ainda muitas
outras denominações que se conservam até o presente: os Heráclidas, de
Héracles; os Apolônidas, de ApoIo; os Poseidônidas, de Posêidon; os Diones e
Diógenes, de Zeus.
8 Para que prosseguir enumerando a multidão dessas denominações e
genealogias? Concluindo, todos os chamados historiadores, poetas e filósofos se
enganam de todos os modos, e o mesmo acontece com aqueles que lhes dão atenção.
Com efeito, escreveram apenas contos, ou melhor, tolices sobre seus deuses. Não
demonstraram que são deuses, mas homens, alguns bêbados, outros dissolutos e
assassinos. Da mesma forma, o que disseram sobre a origem do mundo é
contraditório e sem valor. Em primeiro lugar, alguns afirmaram que o mundo é
incriado, corno antes notamos, e os que disseram que o mundo é incriado e que a
natureza é eterna estão em contradição com aqueles que têm por dogma a criação.
Com efeito, falaram tudo isso
por conjecturas e imaginação humana, e não conforme a verdade. Uns disseram que
existe providência e outros lançaram por terra as doutrinas destes. Arato, por
exemplo, diz: "Comecemos por Zeus, a quem nós, homens, jamais devemos
deixar sem nomear, pois todas as ruas estão cheias de Zeus e também todas as
praças dos homens, e cheios estão o mar e os portos; em todo lugar nos valemos
todos de Zeus. E somos da sua mesma raça. Ele é benigno para com os homens, com
augúrios favoráveis, e desperta as pessoas para o trabalho, recordando-lhes a
vida. Ele nos diz quando a terra é melhor para os bois e para as enxadas;
diz-nos qual é a melhor estação, seja para recolher feixes, seja para lançar
toda semente."
Em quem vamos crer? Em Arato ou
em Sóflocles, que diz: "Não existe em nada providência clara; o melhor é
viver ao acaso, cada um corno puder." Homero, porém, não concorda com
este, pois diz: "Zeus aumenta ou diminui o valor dos homens". E
Simônides: "Ninguém recebeu valor sem os deuses, nenhuma cidade, nenhum
mortal; Deus é a inteligência universal, enquanto nada está sem defeito nos
mortais". O mesmo diz Eurípides: "Sem Deus não existe nada para os
homens". E Menandro: "Além de Deus, ninguém cuida de nós". E de
novo Eurípides: "Quando agrada a Deus salvar-nos, ele nos dá muitas
ocasiões de salvação." E Téstio: "Se Deus quer, tu te salvarás, mesmo
que navegues sobre uma esteira".
Com sentenças infinitas não como
essas, eles não concordam em suas declarações. Sófocles, que em outra passagem
fala contra a providência, agora diz: "O mortal não pode se esquivar dos
golpes divinos". De outro lado, algumas vezes apresentam uma multidão de
deuses, outras falam do poder de um só; os que afirmam que existe providência
são contraditos por aqueles que afirmam a improvidência. E daí Eurípides confessa:
"Nós nos afanamos em muitas coisas por causa de nossas esperanças
trabahando em vão, sem nada saber ao certo". Mesmo sem querer, eles
confessam que não conhecem a verdade. São os demônios que os inspiram, que os
fazem dizer o que lhes inspiram.
Os poetas, como Homero e
Hesíodo, não são, como dizem, inspirados pelas musas, para fazer palavreados,
conforme as divagações da imaginação? Aí não há um espírito puro, mas
enganador. Prova clara disso temos em que às vezes os endemoninhados, e há
casos até hoje, conjurados em nome do Deus verdadeiro, confessaram que os
espíritos do erro são demônios, os mesmos que agiram em outros tempos sobre os
poetas. Algumas vezes, porém, certos poetas tiveram a alma livre desses
demônios e falaram coisas no mesmo sentido que os profetas, a fim de que
servissem de testemunho para eles e para todos os homens a respeito do poder de
um só Deus, do seu julgamento e do resto que disseram.
9 Em troca, os homens de Deus, que foram portadores de um espírito santo
e profetas, recebendo de Deus inspiração e sabedoria, tomaram-se discípulos de
Deus, e santos e justos. Por isso foram considerados dígnos de receber a
recompensa de se converterem em instrumento de Deus e terem parte em sua
sabedoria. É sob a influência dessa sabedoria que falaram sobre a criação do
mundo e sobre tudo o mais. Também profetizaram sobre pestes, fomes e guerras. E
os profetas não foram um ou dois, mas muitos que, conforme as circunstâncias,
se encontraram entre os hebreus, como também entre os gregos a Sibila, e todos
disseram coisas que concordam entre si, tanto sobre os acontecimentos
anteriores a eles, como sobre aqueles que sucederam depois e ainda os
acontecimentos do seu tempo e os que se realizam entre nós no presente. Também
estamos persuadidos de que assim acontecerá com as coisas que estão por vir do
mesmo modo que se realizaram antes.
10 Em primeiro lugar, eles estão de acordo em nos ensinar que do
nada Deus tirou todas as coisas. Com efeito, nada foi coetâneo com Deus: ele
próprio é o seu lugar, não conhece a necessidade e é anterior a todas as
coisas. Mas ele quis criar o homem, que o conheceu. Finalmente, foi para o
homem que ele preparou o mundo, pois aquele que é criado tem necessidades; mas
o incriado de nada necessita. Tendo Deus o seu Verbo imanente em suas próprias
entranhas, gerou-o com a sua própria sabedoria, emitindo-o antes de todas as
coisas. Teve este Verbo como ministro da sua criação e por meio dele fez todas
as coisas. Este se chama Princípio, pois é Príncipe e Senhor de todas as coisas
por ele feitas. Este, portanto, que é espírito de Deus e Princípio e Sabedoria
e Força do Altíssimo, desceu sobre os profetas, e por meio deles falou sobre a
criação do mundo e tudo o mais. De fato, não existiam profetas quando o mundo
era feito; existia, porém, a sabedoria que nele estava, e o seu Verbo santo,
que sempre estava presente a ele. Daí ele dizer por meio do profeta Salomão:
"Quando ele preparava o céu, eu estava com ele, e quando ele afirmava os
alicerces da terra, eu estava junto dele, harmonizando tudo".
Moisés, que viveu muitos anos
antes de Salomão, ou melhor, o Verbo de Deus, que se serve dele como
instrumento, diz: "No princípio fez Deus o céu e a terra". Suas
primeiras palavras são para o princípio e a criação, e depois acrescenta o nome
de Deus, porque não se deve tomar o nome de Deus em vão ou sem motivo. A
sabedoria divina sabia antecipadamente que alguns iriam dizer tolices e dar o
nome de Deus a muitas coisas que não têm ser. Portanto, para que o verdadeiro
Deus fosse conhecido por suas obras e para que se saiba que em seu Verbo Deus
fez o céu e a terra e tudo o que eles contêm, disse: "No princípio fez
Deus o céu e a terra". Depois, a respeito da sua criação, ele nos explica:
"A terra era invisível e informe, as trevas estavam sobre o abismo, e um
espírito de Deus pairava acima da água". É assim que se inicia o
ensinamento da Escritura divina: como foi criada e nascida de Deus uma matéria,
com a qual Deus fez e formou o mundo.
11 O começo da criação foi a luz, porque é ela que manifesta o
ornamento da criação. Por isso diz: "E disse Deus: 'Haja luz', e a luz se
fez. E Deus viu que a luz era boa". -Evidentemente, foi criada como coisa
boa para o homem. -"Colocou uma separação entre a luz e as trevas, e Deus
chamou a luz dia e as trevas chamou noite. Houve uma tarde e houve uma manhã:
um dia. E disse Deus: 'Haja um firmamento no meio da água e separe entre água e
água. E assim se fez. E fez Deus o firmamento e colocou uma separação entre a
água que estava por cima do firmamento e a água que estava por baixo do
firmamento. E Deus chamou o firmamento céu. E Deus viu que era bom. Houve tarde
e houve manhã: segundo dia.
E disse Deus: 'Reúna-se a água
que está debaixo do céu numa só reunião, e apareça a terra seca'. E assim se
fez. A água se reuniu em suas reuniões, e a terra seca apareceu. E chamou Deus
a terra seca terra e as reuniões de águas chamou mares. E Deus viu que era bom.
E Deus disse: 'Que a terra faça brotar toda erva verdejante, produzindo semente
conforme a sua espécie e semelhança, e árvores frutíferas que produzam frutos,
que tragam em si a sua semente conforme a sua semelhança'. E assim se fez. A
terra produziu erva verdejante que produz semente conforme a sua espécie, e
árvores frutíferas que produzem frutos, que trazem em si sua semente conforme a
sua espécie, sobre a terra. E Deus viu que era bom. Houve tarde e houve manhã:
terceiro dia.
E disse Deus: 'Haja luzeiros no
firmamento do céu para iluminar a terra e para separar o dia e a noite, e
servir como sinais para as estações, para os dias e para os anos, e para
iluminar no firmamento do céu e para brilhar sobre a terra'. E assim se fez. E
Deus fez os dois grandes luzeiros, o luzeiro maior para governar o dia, e o
luzeiro menor para governar a noite, e também as estrelas. E Deus os colocou no
firmamento do céu, para iluminar a terra e governar o dia e a noite, e colocar
uma separação entre a luz e as trevas. E Deus viu que era bom. Houve tarde e
houve manhã: quarto dia. E disse Deus: 'Que as águas produzam répteis de alma
vivente e aves que voam sobre a terra debaixo do firmamento do céu'. E assim se
fez. E Deus fez os monstros grandes do mar, e toda alma dos animais que se
arrastam, que as águas produziram conforme suas espécies, e todo volátil alado
segundo a sua espécie. E Deus viu que era bom. E Deus os abençoou, dizendo:
'Crescei e multiplicaivos e enche i as águas do mar, e que as aves se
multipliquem sobre a terra'. Houve tarde e houve manhã: quinto dia.
E disse Deus: 'Que a terra
produza alma vivente conforme a sua espécie, quadrúpedes e répteis e feras da
terra segundo a sua espécie'. E assim se fez. E Deus fez as feras da terra
conforme a sua espécie e os animais segundo a sua espécie, e todos os répteis
da terra. E Deus viu que era bom. E disse: 'Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança, e que ele comande os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos, toda a terra e todos os répteis que rastejam sobre a terra'. E Deus
fez o homem, à imagem de Deus o fez, homem e mulher os fez. E os abençoou,
dizendo: 'Crescei e multiplicai-vos; enchei a terra e dominai-a, ordenai aos
peixes do amar, às aves do céu, a todos os animais, a toda a terra e a todos os
répteis que se arrastam sobre a terra'.
E Deus disse: Vede! Eu vos dei
toda planta que traz semente, que espalha semente sobre toda a terra e toda
árvore que tem fruto com semente, para que vos sirvam de alimento, e a todos os
animais da terra, a todas as aves do céu e a todo réptil que se arrasta sobre a
terra, que tem em si alento de vida, toda erva verde para alimento'. E assim se
fez. E Deus viu tudo o que ele havia feito; e eis que isso era muito bom. Houve
uma tarde e uma manhã: sexto dia. E o céu e a terra foram terminados,
juntamente com todo o seu ornamento. E Deus terminou no sexto dia as obras que
fizera, e descansou no sétimo dia de todas as obras que fizera. E Deus abençoou
o sétimo dia e o santificou, porque nele descansou de todas as obras que Deus
começara afazer."
12 Ninguém pode explicar de modo digno a obra dos seis dias, nem
traçar sua economia completa, mesmo que tivesse mil bocas e mil línguas; mesmo
que vivesse mil anos na presente vida, nem assim seria capaz de dizer algo
digno dela, por causa da soberana grandeza e riqueza da sabedoria de Deus, que
estão contidas nesta descrição da obra de seis dias. Certamente muitos
escritores a imitaram e quiseram dar-lhe uma explicação; contudo, mesmo tomando
esse ponto de partida, eles não exprimiram senão uma centelha digna da verdade,
seja a respeito do mundo, seja sobre a natureza do homem. As explicações dos
filósofos, historiadores e poetas parecem dignas de crédito porque estão
adornadas de bela expressão; contudo, no fundo, vê-se que são néscias e vazias,
pois contêm apenas uma multidão de bobagens e nelas não é dito nem sequer uma
sombra de verdade. E se parece que dizem algo de verdadeiro, acha-se misturado
com o erro. Como um veneno mortal, ao qual se mistura mel, vinho ou qualquer
outra coisa, torna tudo prejudicial e inútil, assim também se percebe que a
verbosidade deles é pura inanidade, ou melhor, prejuízo para aqueles que nela
crêem.
Alguma coisa ainda sobre o
sétimo dia, sobre o qual todos os homens falam, mas cuja razão a maior parte
desconhece. De fato, o que os hebreus chamam de sábado significa em grego
sétimo dia, nome que todo o gênero humano lhe dá, sem saber, porém, por que
assim é chamado. O que o poeta Hesíodo diz, afirmando que do Caos nasceu o
Érebo, a Terra e o Amor, que domina, segundo ele, a todos, seja deuses, seja
homens, é dito de maneira vazia e fria e totalmente alheia à verdade. Com
efeito, Deus não deve se deixar vencer pelo prazer, quando até os homens
temperantes se abstêm de todo prazer vergonhoso e de todo mau desejo.
13 Além disso, ao começar o relato da criação pelas coisas da
terra, aqui de baixo, Hesíodo tem pensamento puramente humano, baixo, fraco
para ser aplicado a Deus. É o homem que, sendo daqui de baixo, começa a
construir pela terra, e logicamente não pode pôr o telhado antes de ter
assentado os alicerces. O poder de Deus, porém, se manifesta antes de tudo em
fazer as coisas do nada e depois fazer como quiser. De fato, o que é impossível
para os homens é possível para Deus. Por isso, o profeta diz que antes foi
criado o céu, que tem forma de teto, dizendo: "No princípio, Deus fez o
céu", isto é, que o céu foi feito pelo Princípio, conforme dissemos antes.
De certo modo, chama a terra de solo e alicerce, e de abismo à imensidão das
águas, e também de trevas, porque o céu, criado por Deus, cobria como uma tampa
tanto as águas como a terra.
O espírito, que se mantinha
sobre a água, o qual Deus deu para animação da criação, como deu a alma ao homem,
misturando o sutil com o sutil- pois o espírito é sutil e a água também o é -,
para que o espírito alimente a água, e a água, com o espírito, alimente a
criação, penetrando-a por todas as partes. Esse único espírito, ocupando o
lugar da luz, se mantinha entre a água e o céu, a fim de que, de certa maneira,
as trevas não se comunicassem com o céu, que está mais próximo de Deus, antes
que Deus dissesse: "Faça-se a luz". Assim, o céu, como uma abóbada,
continha a matéria, semelhante a uma bola. Com efeito, outro profeta, chamado
Isaías, falando a respeito do céu, disse: "Este é o Deus que fez o céu
como uma abóbada e o estendeu como uma tenda para nele habitar".
Assim, a ordenação de Deus, isto
é, seu Verbo, brilhando como uma lâmpada em casa fechada, iluminou a terra
subceleste por uma criação fora do mundo. E Deus chamou à luz dia e à noite
trevas, pois o homem certamente não teria sabido chamar à luz dia, nem à noite
trevas, como também não saberia dar nome às demais coisas, se não tivessem
recebido seus nomes de Deus, que as criou. No começo da história e da criação,
a Escritura santa não falou desse firmamento que vemos, e sim de outro céu
invisível para nós; só depois o nosso céu visível se chamou firmamento. Nele
está recolhida metade das águas, para fornecer à humanidade chuvas, tempestades
e orvalhos; a outra metade foi deixada na terra para os rios, fontes e mares.
Assim, quando a água ainda cobria a terra, principalmente nos lugares baixos,
Deus fez, através de seu Verbo, com que a água se reunisse em um só lugar e que
a parte seca se tornasse visível, pois no princípio era invisível. A terra
tornada visível estava ainda informe. Deus lhe deu forma e a adornou com toda
espécie de ervas, sementes e plantas.
14 Além disso, considera a diversidade que há nessas coisas, sua
variada beleza e multidão, e como, através deles, se nos manifesta a
ressurreição, sendo prova daquela que um dia se realizará em todos os homens.
De fato, se refletes bem, quem não se admirará que de uma semente minúscula de
figo se forme uma figueira e que de outras peque ninas sementes nasçam árvores
enormes? O mundo também nos oferece semelhança com ornar. Assim como o mar
teria secado há muito tempo por causa de seu sal se não houvesse afluência dos
rios e fontes que lhe fornecem alimento, de modo semelhante o mundo, se não
tivesse recebido a lei de Deus e os profetas, que fazem correr para ele fontes
de doçura, misericórdia e justiça e mantêm o ensinamento dos santos mandamentos
de Deus, também já teria perecido por causa da maldade e do pecado que nele se
multiplica.
Do mesmo modo que no mar existem
ilhas habitáveis, com água e vegetação, enseadas e portos para refúgio durante
as tempestades, assim Deus deu ao mundo, em meio às tormentas e ondas de
pecados, os lugares de reunião, as chamadas igrejas santas, nas quais, como nas
ilhas de portos acolhedores, se encontramos ensinamentos da verdade, nas quais
se refugiam os que querem salvar-se, tornados amantes da verdade e decididos a
fugir da cólera e do julgamento de Deus. Há, porém, outras ilhas rochosas, sem
água nem vegetação, repletas de feras, inabitáveis, para dano dos navegantes e
náufragos, onde os navios atracam e perecem os que e elas descem; do mesmo
modo, há também doutrinas que extraviam, isto é, as das heresias, que levam à
perdição aqueles que aderem a elas. Porque não se guiam pelo Verbo da verdade,
mas à maneira dos piratas que, enchendo os navios, os atracam em recifes para
arruiná-las. Assim acontece com aqueles que se extraviam da verdade, que acabam
perecendo por causa do erro.
15 No quarto dia foram criados os luzeiros. Deus, que sabe tudo de
antemão, sabia as bobagens queos vãos filósofos iriam dizer, com intenção de
eliminar a Deus: que tudo quanto nasce na terra se deve ao influxo dos
elementos. Por isso, para que a verdade ficasse clara, as plantas e as sementes
foram criadas antes dos elementos, pois o posterior não pode produzir o que é anterior.
Os luzeiros contêm o exemplo e símbolo de um grande mistério, pois o sol é
símbolo de Deus e a lua o é do homem. Como o sol difere muito da lua em poder e
glória, assim Deus é muito diferente da humanidade; como o sol permanece sempre
cheio e não diminui, assim Deus permanece sempre perfeito, repleto de poder,
inteligência, sabedoria, imortalidade e de todos os bens.
Em troca, a lua perece cada mês,
e de certo modo, morre, e é símbolo de como é o homem; depois torna a nascer e
cresce, para demonstrar a ressurreição futura. Igualmente os três dias que
precedem a criação dos luzeiros são símbolo da Trindade, de Deus, de seu Verbo
e de sua Sabedoria. No quarto símbolo está o homem, que necessita de luz. Assim
temos: Deus, Verbo, Sabedoria, Homem. É também por isso que os luzeiros foram
criados no quarto dia. Por outro lado, a disposição dos astros representa a
economia e a ordem dos justos e piedosos, que guardam a lei e os mandamentos de
Deus. Com efeito, os astros mais visíveis e brilhantes representam os profetas;
por isso permanecem fixos, não mudando de um lugar para outro. Aqueles que
ocupam o segundo grau de brilho são tipo do povo dos justos; por fim, os que
mudam e passam de um lugar para outro, os chamados planetas, são símbolo dos
homens que se afastam de Deus, abandonando sua lei e seus mandamentos.
16 No quinto dia foram criados os animais que procedem das águas,
pelas quais e nas quais se mostra a multiforme sabedoria de Deus. De fato, quem
seria capaz de enumerar sua quantidade e a variedade de suas variadíssimas
espécies? Além disso, o que foi criado das águas por Deus foi abençoado por
ele, para que isso servisse de prova sobre o que os homens deveriam receber:
penitência e remissão dos pecados através da água e banho de regeneração, todos
os que se aproximam da verdade, renascem e recebem a bênção de Deus.
Os monstros marinhos e as aves
carnívoras são símbolo dos avarentos e transgressores. De fato os animais
aquáticos e aves, embora sendo de uma única natureza, alguns permanecem no que
é conforme a natureza, sem prejudicar aos mais fracos, guardam a lei de Deus e
se alimentam das sementes da terra; outros transgridem a lei de Deus, comendo
carne, e prejudicam os mais fracos. De modo semelhante, os justos, guardando a
lei de Deus, não mordem nem causam dano a ninguém, vivendo santa ejustamente;
mas os ladrões, assassinos e ateus assemelham-se aos monstros marinhos, às
feras e aves carnívoras, pois de certo modo engolem os mais fracos.
17 No sexto dia, Deus fez os quadrúpedes, as feras e os répteis da
terra, mas não se fala da bênção correspondente, guardando-a para o homem, que
criaria no mesmo sexto dia. Assim, os quadrúpedes e feras se tornaram tipo de alguns
homens que desconhecem a Deus, que são ímpios e não fazem penitência. De fato,
os que se convertem de suas iniqüidades e vivem justamente voam como aves em
sua alma, sentindo as coisas de cima e agradando à vontade de Deus; mas os que
desconhecem a Deus e vivem de modo ímpio são parecidos com essas aves, que tem
asas e não podem voar, nem subir até a altura da divindade. De modo semelhante,
estes se chamam homens, mas sentem o que é baixo e terreno, pois estão pesados
por causa de seus pecados.
Quanto às feras, elas se chamam
assim por causa da sua ferocidade, não porque desde o princípio fossem más ou
venenosas, pois nada do que é mau foi criado por Deus desde o princípio; ao
contrário, tudo era bom e até muito bom, mas o pecado do homem as tornou más.
Quando o homem se tornou transgressor, elas também transgrediram. É como numa
casa: se o senhor se comporta bem, os domésticos não têm outro remédio a não
ser comportar-se bem; contudo, se o senhor peca, os servidores pecam junto com
ele. Da mesma forma, quando o homem, que é o senhor, pecou, também os animais,
seus escravos, pecaram com ele. Portanto, quando o homem voltar a viver
conforme a natureza e não agir mal, também os animais serão estabelecidos em
sua mansidão original.
18 Quanto à criação do homem, não há palavra humana que possa
expressar a sua grandeza, ainda que a narração da Escritura divina seja tão
breve. Com efeito, o fato de que Deus diga: "Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança" dá, antes de tudo, a entender a dignidade do homem.
De fato, tendo Deus feito o universo por sua palavra, considerou tudo como
coisa acessória e julgou como obra eterna digna de sua criação somente a
criação do homem.
Além disso, Deus se apresenta
como se precisasse de ajuda, pois diz: "Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança", mas não diz a ninguém essa palavra "Façamos", a não
ser a seu próprio Verbo e à sua Sabedoria. Tendo feito o homem e tendo-o
abençoado para que se multiplicasse e enchesse a terra, submeteu a ele todas as
coisas para que o servisse, ordenou que desde o princípio se alimentasse com os
frutos da terra, sementes, ervas e árvores e que os animais fossem seus
comensais, os quais também deveriam comer todas as sementes da terra.
19 Tendo Deus terminado, no sexto dia, o céu, a terra, o mar e tudo
o que nele existe, no sétimo dia descansou de todas as obras que fizera. Em
seguida, a divina Escritura recapitula assim: "Este é o livro da origem do
céu e da terra, quando existiu o dia em que Deus fez o céu e a terra, toda
verdura do campo antes de nascer, toda erva do campo antes de brotar, pois Deus
não havia feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar a
terra". Com essas palavras nos dá a entender que, naquele tempo, toda a
terra era rega da por uma fonte divina e o homem não tinha necessidade de
cultivá-Ia, pois, por mandamento de Deus, ela brotava espontaneamente, a fim de
que o homem não se fatigasse trabalhando-a.
Para mostrar-nos a formação do
homem e para que não parecesse um problema insolúvel aos homens Deus ter dito:
"Façamos o homem" e não nos ter mostrado sua criação, a Escritura nos
ensina, dizendo: "E uma fonte subia da terra e regava toda a face da
terra, e Deus formou o homem do pó da terra, e lhe insuflou alento de vida em
seu rosto, e o homem foi feito alma vivente. É por isso que a alma é chamada
imortal. Depois de ter formado o homem, Deus escolheu um lugar pelas bandas do
Oriente, excelente por sua luz, iluminado por um ar mais brilhante, adornado
com as mais belas plantas, e aí Deus colocou o homem.
20 Este é o relato da história sagrada, conforme a Escritura:
"Deus plantou um jardim no Éden, no Oriente, e aí colocou o homem que
formara. E Deus fez brotar da terra toda árvore formosa à vista e saborosa ao
paladar, e a árvore da vida no meio do paraíso, e a árvore da ciência do bem e
do mal. Do Éden saía um rio para regar o jardim e a partir daí se dividia em
quatro braços. Um se chamava Fison e é este aquele que rodeia toda a terra de
Hévila, onde existe o ouro. O ouro dessa terra é bom, e aí também se encontra o
carvão e a pedra ônix. O segundo rio se chama Geon e é aquele que rodeia toda a
terra da Etiópia. O terceiro rio é o Tigre, que corre diante dos assírios. O
quarto rio é o Eufrates. E o Senhor Deus tomou o homem a quem formara e o
colocou no jardim para que o cultivasse: 'Comerás de toda árvore do jardim, mas
não comerás da árvore da ciência do bem e do mal, pois no dia em que dela
comerdes, morrereis de morte'.
E o Senhor Deus disse: 'Não é
bom que o homem esteja só; façamos para ele uma ajuda que lhe seja semelhante'.
E Deus plasmou então da terra todas as feras do campo e todas as aves do céu e
as apascentou diante de Adão. O nome com que Adão chamou a toda alma vivente,
esse é o seu nome. E Adão pôs nomes em todos os animais, em todas as aves do
céu e em todas as feras do campo; mas não se achou para Adão ajuda que lhe
fosse semelhante. Então Deus fez cair sobre Adão um êxtase e um sono profundo,
tomou uma de suas costelas e preencheu de carne o lugar vazio. E o Senhor Deus
construiu a costela tirada de Adão em forma de mulher e a apresentou a Adão.
Adão disse: 'Isto sim é osso de meus ossos e carne de minha carne; esta se
chama mulher, porque foi tirada do homem. Por isso, o homem abandonará seu pai
e sua mãe, juntar-se-á com sua mulher e serão dois em uma só carne'. E os dois,
Adão e sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam.
21 A serpente, porém, era a mais astuta de todas as feras sobre a
terra que o Senhor Deus fizera. A serpente disse à mulher: 'Como é que Deus
disse: Não comas de toda árvore do jardim?' A mulher disse à serpente: 'Nós
comemos de toda árvore do jardim; mas a respeito do fruto da árvore que está no
meio do paraíso, Deus nos disse: Não comais dele, nem o toqueis para que não
morrais'. A serpente disse à mulher: 'Não morrereis de morte. É que Deus sabia
que no dia em que dele comerdes vossos olhos se abrirão e sereis como deuses,
conhecendo o bem e o mal.' E a mulher viu que a árvore era boa para comer,
agradável aos olhos para ver e preciosa para entender; então, tomando de seu
fruto, comeu e deu também a seu marido; eles comeram e os olhos de ambos se
abriram, perceberam que estavam nus, colheram folhas de figueira e fizeram
cinturões para si. Então ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim
depois do meio-dia, e Adão e sua mulher se esconderam da face de Deus no meio
da árvore do paraíso.
O Senhor Deus chamou Adão e lhe
disse: 'Onde estás?' Adão respondeu: 'Ouvi tua voz no jardim e temi, pois
estava nu, e me escondi'. Deus disse: 'Quem te disse que estavas nu, senão que
comeste da única árvore que te mandei não comeres?' Adão disse: 'A mulher que
me destes, foi ela que me deu da árvore e eu comi'. Então Deus disse à mulher:
'Por que fizeste isso?' A mulher respondeu: 'A serpente me enganou e eu comi'.
O Senhor Deus disse à serpente: 'Porque fizeste isso serás maldita entre todas
as feras da terra. Caminharás sobre teu peito e sobre teu ventre, e comerás
terra todos os dias de tua vida. Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a
tua descendência e a descendência dela: ela esmagará a tua cabeça e tu lhe
morderás o calcanhar'. E disse à mulher: 'Multiplicarei muito as tuas tristezas
e o teu gemido; darás à luz a teus filhos na dor, estarás voltada para teu
marido e ele te dominará'. E disse a Adão: 'Porque ouviste a voz de tua mulher
e comeste da única árvore que te mandei não comer, a terra será maldita em teus
trabalhos, a cultivarás na tristeza todos os dias de tua vida; ela produzirá
espinhos e cardos para ti e comerás a erva do campo. Comerás o teu pão com o
suor do teu rosto até que voltes para a terra de onde foste tirado, porque és
terra e à terra retornarás". Esse é o relato da santa Escritura sobre a
história do homem e do jardim.
22 Agora me dirás: "Tu dizes que Deus não deve estar
circunscrito a nenhum lugar. Como agora dizes que Deus passeava no
jardim?" Ouve minha resposta. Deus, o Pai do universo, é imenso e não está
limitado a um lugar, pois não existe lugar para seu descanso. O seu Verbo,
porém, pelo qual ele fez todas as coisas, sendo sua potência e sabedoria,
tomando a figura do Pai e Senhor do universo, foi ele que se apresentou no
jardim em figura de Deus e conversava com Adão. De fato, a própria divina
Escritura nos ensina que Adão disse ter ouvido a sua voz. Que outra coisa é
essa voz senão o Verbo de Deus, que é também seu Filho? Filho não à maneira
como poetas e mitógrafos dizem que nascem filhos dos deuses por união carnal,
mas como a verdade explica que o Verbo de Deus está sempre imamente no coração
de Deus.
Porque antes de criar alguma
coisa, o tinha por conselheiro, pois era sua mente e pensamento. E quando Deus
quis fazer tudo o que havia deliberado, gerou esse Verbo proferido, como
primogênito de toda criação, não esvaziando-se de seu Verbo, mas gerando o
Verbo e conversando sempre com ele. Por isso, as santas Escrituras e todos os
portadores do espírito nos ensinam, dentre as quais João diz: "No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus", dando a entender que no
princípio existia apenas Deus e nele o seu Verbo. Depois diz: "E Deus era
o Verbo. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito." Portanto,
sendo o Verbo Deus e nascido de Deus, quando o Pai do universo quer, ele o
envia a algum lugar e, chegando aí, ele é ouvido e visto, pois é enviado por
ele e se encontra em algum lugar.
23 Portanto, Deus fez o homem no sexto dia, mas sua modelação foi
manifestada no sétimo dia, quando fez também o jardim, para que estivesse em
lugar melhor e local excelente. Que isso seja verdade, a própria experiência o
demonstra. Com efeito, como não considerar a dor que as mulheres sofrem no
parto e como logo se esquecem disso, para que se cumpra a palavra de Deus que o
gênero humano cresça e se multiplique? O mesmo se diga da condenação da
serpente: como nos parece odiosa, arrastando-se sobre o seu próprio ventre e comendo
terra, para que também isso seja demonstração do que antes foi dito.
24 Deus ainda fez brotar da terra toda árvore formosa à vista e boa
para comer. De fato, no princípio havia apenas o que foi criado no terceiro
dia: plantas, sementes e ervas; mas o que havia no jardim nasceu com extrema
beleza e formosura, pois se diz que era uma plantação plantada pelo próprio
Deus. Quanto ao resto das plantas, no mundo há semelhantes. Todavia, há duas
árvores, a da vida e a da ciência, que não existem em nenhuma terra, mas
somente no jardim do Éden. Que o jardim seja terra e esteja plantado sobre a
terra, a Escritura diz: "E Deus plantou um jardim em Éden, ao Oriente, e
colocou aí o homem, e Deus ainda fez brotar da terra toda árvore formosa à
vista e boa para comer." Pelas expressões "ainda da terra" e
"para o Oriente", a divina Escritura claramente nos ensina que o
jardim estava sob o nosso céu, assim como o Oriente e a terra. O que se chama
Éden em hebraico é traduzido por "delícias". A Escritura indica que
de Éden saía um rio para regar o jardim e que a partir daí se dividia em quatro
braços. Dois deles são o Fison e o Geon, que regam as partes orientais,
principalmente o Geon, que rega toda a terra da Etiópia e que dizem aparecer no
Egito com o nome de Nilo. Quanto aos outros dois rios, os chamados Tigre e
Eufrates, são bem conhecidos entre nós, pois correm perto de nossas regiões.
Como dissemos acima, Deus
colocou o homem no jardim, para que o cultivasse e o guardasse, e mandou que
ele comesse de todos os frutos, portanto também da árvore da vida, e mandou que
só não experimentasse da árvore da ciência. E Deus o transportou da terra da
qual fora criado para ojardim, dando-lhe ocasião de progresso, para que
crescendo e chegando a ser perfeito e até declarado deus, subisse então até o
céu, possuindo a imortalidade, pois o homem foi criado como ser intermédio, nem
completamente mortal nem absolutamente imortal, mas capaz de uma e outra coisa,
assim como seu lugar, o jardim, se considerarmos a sua beleza, é lugar
intermédio entre o mundo e o céu. Quando a Escritura diz "trabalhar",
não dá a entender outro trabalho, mas a observância do mandamento de Deus, a
fim de que o homem, violando-o, não se perca, como efetivamente aconteceu
quando se perdeu pelo pecado.
25 A própria árvore da ciência era boa e bom era também o seu
fruto. Não produziu, como pensam alguns, a árvore da morte, pois o que produziu
esta foi a desobediência. De fato, em seu fruto não havia outra coisa senão
ciência, e a ciência é boa, desde que seja usada devidamente. Acontece que, por
sua idade, Adão era uma criança e por isso ainda não podia receber de modo
digno a ciência. Quando uma criança nasce, não pode imediatamente comer pão,
mas primeiro se alimenta de leite e depois, conforme vai crescendo em idade,
usa-se alimento sólido. Algo parecido aconteceu com Adão. Não foi também por
inveja, como pensam alguns, que Deus lhe proibiu comer da ciência.
Além disso, Deus queria
prová-lo, para ver se era obediente ao seu mandamento, e também queria que o
homem permanecesse o mais tempo possível simples e inocente na idade de
criança. Com efeito, é coisa santa, não só diante de Deus, mas também diante
dos homens, que os filhos se submetam aos pais em simplicidade e inocência.
Portanto, se os filhos devem se submeter aos pais, quanto mais o homem a Deus,
Pai do universo? Além do mais, não é normal que as crianças pequenas tenham
pensamentos acima de sua idade, pois assim como o crescimento em idade acontece
ordenadamente, do mesmo modo o entender e o sentir.
Por outro lado, quando uma lei
manda abster-se de algo e não se obedece, é evidente que não é a lei que nos
traz o castigo, mas a transgressão e a desobediência. Com efeito, se um pai
manda seu filho abster-se de certas coisas e ele não obedece à ordem do pai,
este o açoita e castiga; contudo, não é por isso que se dirá que tais coisas
são os açoites, mas que é a desobediência que acarreta o castigo ao
desobediente. Assim, foi a desobediência que acarretou ao primeiro homem ser
expulso do jardim do Éden; não porque a árvore da ciência tivesse alguma coisa
de mau, mas foi por causa de sua desobediência que o homem atraiu trabalho,
dor, tristeza e caiu finalmente sob o poder da morte.
26 Também foi um grande beneficio feito por Deus ao homem que este
não permanecesse sempre em pecado, mas, de certo modo, como se tratasse de um
desterro, o expulsou do paraíso, para que pagasse por tempo determinado a pena
de seu pecado e, assim educado, fosse novamente chamado. Tendo sido o homem
formado neste mundo, misteriosamente se escreve no Gênesis como se ele tivesse
sido colocado duas vezes no jardim. A primeira vez se realizou quando foi aí
colocado; a outra se realizaria depois da ressurreição e do julgamento. Podemos
ainda dizer mais. Do mesmo modo como um vaso que depois de fabricado tem algum
defeito, é novamente fundido e modelado para que fique novo e inteiro, assim
acontece com o homem através da morte: de certo modo se quebra, para que na
ressurreição surja sadio, isto é, sem mancha, justo e imortal. Quanto ao fato
de Deus chamar e dizer: "Adão, onde estás?", Deus não o fez como se
não soubesse, mas, por causa de sua longanimidade, oferecia ao homem ocasião de
penitência e confissão.
27 Poder-se-á dizer: "O homem não foi criado mortal por
natureza?" De jeito nenhum. "Então foi criado imortal?" Também
não dizemos isso. "Então não foi nada?" Também não dizemos isso. O
que afirmamos é que por natureza não foi feito nem mortal, nem imortal. Porque
se, desde o princípio, o tivesse criado imortal, o teria feito deus; por outro
lado, se o tivesse criado mortal, pareceria que Deus é a causa da morte.
Portanto, não o fez mortal, nem imortal, mas, como dissemos antes, capaz de uma
coisa e de outra. Assim, se o homem se inclinasse para a imortalidade,
guardando o mandamento de Deus, receberia de Deus o galardão da imortalidade e
chegaria a ser deus; mas se se voltasse para as coisas da morte, desobedecendo
a Deus, seria a causa da morte para si mesmo, porque Deus fez o homem livre e
senhor de seus atos. O que o homem atraiu sobre si mesmo por sua negligência e
desobediência, agora Deus o presenteou com isso, através de sua benevolência e
misericórdia, contanto que o homem lhe obedeça. Do mesmo modo como o homem,
desobedecendo, atraiu sobre si a morte, assim também, obedecendo à vontade de
Deus que quer, pode adquirir para si a vida eterna. De fato, Deus nos deu lei e
mandamentos santos, e todo aquele que os cumpre pode salvar-se e, tendo
alcançado a ressurreição, herdar a incorruptibilidade.
28 Adão foi expulso do jardim e nessas condições ele conheceu a sua
esposa Eva, que Deus havia feito de sua costela para que fosse sua mulher. Não
porque não pudesse plasmar a mulher separadamente, mas porque sabia de antemão
que os homens haveriam de nomear uma multidão de deuses. Sendo presciente e
sabendo que o erro haveria de nomear, através da serpente, uma multidão de
deuses -embora não havendo mais do que um Deus, já desde aquele tempo o erro
pensava em semear subrepticiamente multidão de deuses, dizendo: "Sereis
como deuses" -para que não se pudesse imaginar que um Deus fez o homem e
outro fez a mulher, fez os dois de uma única criação.
Entretanto, Deus fez junto a
mulher não só para mostrar o mistério de sua monarquia e unicidade, mas também
para lhes mostrar maior benevolência. Depois que Adão disse a Eva: "Esta
sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne", profetizou mais dizendo:
"Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e juntar-se-á à sua mulher, e
os dois serão uma só carne". Isso se vê que se cumpre em nós mesmos. Com
efeito, quem, legitimamente casado, não abandona sua mãe e seu pai, toda a sua
parentela e todos os seus familiares, apegando-se e unindo-se à sua mulher, a
qual quer acima de todos? Sabe-se que houve aqueles que sofreram até à morte
por amor a suas esposas.
Esta Eva, por ter sido
extraviada desde o princípio pela serpente e por ter-se tornado guia do pecado,
o demônio perverso, que também se chama Satã e que lhe falou então através da
serpente, nomeia esta Eva em seus gritos até hoje, quando age nos homens por
ele possuídos. O demônio também se chama dragão, por ter-se afastado de Deus,
pois no princípio foi um anjo. Teria muito que falar sobre este. Agora, porém,
deixemos de lado sua explicação, pois já tratamos dele em outros discursos.
29 Quando Adão conheceu a sua mulher Eva, esta concebeu e deu à luz
um filho chamado Caim. E disse: "Tive um homem por meio de Deus".
Novamente deu à luz um filho, chamado Abel, que era pastor de ovelhas, enquanto
Caim cultivava a terra. A história dos dois irmãos é muito longa para adaptá-Ia
à situação de minha exposição; por isso, o próprio livro que se chama Origem do
mundo pode informar os estudiosos a respeito de seus pormenores.
Satanás, vendo que Adão e Eva
não só viviam, mas geravam filhos, foi tomado de inveja por não ter podido
levá-Ios à morte. Vendo que Abel era agradável a Deus, agiu sobre seu irmão
Caim e fez com que este matasse seu irmão Abel. Assim começou a existir a morte
neste mundo, que faz caminho até hoje por todo o gênero humano. Deus, porém,
sendo compassivo e querendo dar a Caim, como a Adão, ocasião de penitência e
confissão, disse: "Onde está o teu irmão Abel?" Caim, desconfiado de
Deus, respondeu: "Não sei. Por acaso sou guarda do meu irmão?"
Irritado contra ele, Deus disse: "Por que fizeste isso? A voz do sangue de
teu irmão clama da terra a mim. Agora, tu és maldito da terra, que se abriu
para receber de tua mão o sangue de teu irmão. Ficarás gemendo e tremendo sobre
a terra." Por isso, a partir daí, a terra temerosa já não recebe o sangue
do homem, nem de nenhum animal, manifestando assim que ela não é culpada, mas
que o homem é transgressor.
30 Caim também teve um filho, chamado Henoc. E edificou urna
cidade, à qual chamou de Henoc, o nome de seu filho. Então teve início a
construção de cidades, antes do dilúvio, e não corno Homero mente, dizendo:
"Porque ainda não havia sido construída cidade de míseros homens."
Henoc teve um filho chamado Gaidad, o qual gerou Meel, Meel gerou Matusala e
Matusala gerou Lamec. Lamec tornou para si duas mulheres, cujos nomes eram Ada
e Sela. Daí começou a poligamia e também a música. De fato, Lamec teve três
filhos: Obel, Jubal e Tobel. Obel foi pastor, habitando em tendas; Jubal foi o
inventor do saltério e da cítara; Tobel foi ferreiro, trabalhando com martelo
em bronze e ferro. Até aqui chega a lista da descendência de Caim, que é
esquecida daqui para frente, por ter ele matado o seu irmão.
Para substituir Abel, Deus
concedeu a Eva que concebesse e gerasse outro filho, que se chamou Set, do qual
procede todo o gênero humano até hoje. Aos que desejam e têm vontade de
conhecer todas as outras gerações, é fácil mostrar para eles nas santas
Escrituras. Nósjá tratamos em outra parte corno indicamos acima, da formação
das genealogias no primeiro livro Sobre as histórias.
O Espírito Santo nos ensina tudo
isso por intermédio de Moisés e dos outros profetas, de modo que os nossos
livros dos que adoramos a Deus, são mais antigos e sobretudo mais verdadeiros
que os de todos os historiadores e poetas. Eles fantasiam que foi ApoIo o
inventor da música; outros que foi Orfeu, dizendo que ele inventou a música
tomando-a do canto das aves. Vê-se, porém, que é tudo palavrório vão e sem
fundamento, pois esses nasceram muitos anos depois do dilúvio. Quanto a Noé,
que é chamado Deucalião por alguns, tratamos a respeito dele no livro antes
mencionado, no qual, se te agrada, podes tu mesmo ler.
31 Depois do dilúvio, novamente recomeçaram a existir cidades e
reis do seguinte modo: a primeira cidade foi Babilônia, Orec, Arcat e Calana,
na terra de Senaar, e seu rei se chamava Nebrot. Destas saiu Assur, que deu
nome aos assírios. Nebrot construiu as cidades de Nínive, Roboom, Calac e Dasen
(esta entre Nínive e Calac). No início, Nínive foi uma grande cidade. Outro
filho de Sem, filho de Noé, chamado Mesraim, gerou os Ludomim, os que se chamam
Enemiguim, os Labiim, os Neptalim, os Patrosinim e os Caslonim, de onde saíram
os Filistiim. Dos filhos de Noé e de sua consumação e genealogia fizemos um
resumo no livro anteriormente citado. Recordaremos agora o que ali foi omitido
sobre cidades e reis, assim como acontecimentos do tempo em que havia uma só e
mesma língua. Antes das línguas se dividirem, existiram as cidades
anteriormente descritas.
No tempo em que iam se dividir,
decidiram, por própria conta e não segundo Deus, edificar uma cidade e uma
torre, cujo topo chegasse até o céu, para adquirir fama gloriosa. Como se
atreveram a empreender tão grande obra contra o conselho de Deus, Deus atirou
por terra a cidade deles e arrasou a torre. A partir disso, ele mudou as
línguas dos homens e deu fala diferente a cada um. A própria Sibila indicou
isso, anunciando a ira que deveria vir ao mundo: "Mas quando se cumprirem
as ameaças do grande Deus, que um dia ameaçara os mortais, quando construiram a
torre na terra da Assíria... tinham todos a mesma língua e quiseram subir até o
céu estrelado. Nesse momento, o Imortal impulsionou fortemente os ares, e os
ventos derrubaram a grande torre elevada, semeando a discórdia nas fileiras dos
mortais. Depois que a torre caiu, as línguas humanas se dividiram nas muitas
falas dos mortais." E o resto.
Isso aconteceu na Caldéia. Em
Canaã houve uma cidade chamada Carran. Nesse tempo, o primeiro rei do Egito foi
o faraó, que, segundo os egípcios, se chamava também Necaot. E assim foram os
outros reis que lhe sucederam. Na terra de Senaar, entre os chamados caldeus, o
primeiro rei foi Arioc; depois deste, veio outro chamado Elasar, depois
Codolagomor, rei de Elam; depois deste, Targal, rei dos povos que se chamam
assírios. Houve outras cinco cidades no território de Cam, filho de Noé: a
primeira se chamava Sodoma; e as outras, Gomorra, Adama, Seboim e Balac, também
chamada Segor. Os nomes de seus reis são: Balas, rei de Sodoma; Barsas, rei de
Gomorra; Senaar, rei de Adama; Himor, rei de Seboin; Balac, rei de Segor, que
também se chama Balac.
Esses ficaram submetidos a
Codolagomor, rei dos assírios, durante doze anos. E no décimo terceiro ano se
separaram de Codolagomor. E assim aconteceu que os quatro reis dos assírios
fizeram guerra contra os cinco reis. Este foi o começo das guerras sobre a
terra. Derrotaram os gigantes Caranain e com eles nações fortes, os omeus na
mesma cidade, e os correus nos montes chamados Seir até a cidade chamada
Terebinto de Farã, que está no deserto. Nesse mesmo tempo, havia um rei justo
chamado Melquisedec, na cidade de Salém, que agora se chama Hierosólima. Este
foi o primeiro de todos os sacerdotes do Altíssimo e dele a cidade de Jerusalém
recebeu o nome, aquela que antes chamamos Hierosólima. Depois de Melquisedec,
podemos ver que houve sacerdotes por toda a terra. Depois dele, reinou Abimelec
em Gerara, e depois outro Abimelec. Depois reinou Efrom, também chamado Queteu.
São esses os nomes desses primeiros reis; os nomes dos outros reis dos
assírios, que vieram muitos anos depois, foram omitidos pela crônica. Dos
nossos últimos tempos, recordam-se os reis da Assíria: Teglafasar, depois
Salamanasar e depois Senacarim. Este último teve como triarca Adramalec, o
etíope, que também foi rei do Egito. Contudo, tudo isso, comparado com as
nossas Escrituras, é coisa muito recente.
32 Daí se podem julgar as histórias dos estudiosos e amantes da
antiguidade, pois são recentes os últimos fatos a que aludimos sem utilizar os
santos profetas. Em todo caso, no início eram poucos os homens que habitavam a
terra da Arábia e da Caldéia e foi apenas depois da divisão das línguas que
começaram, em seus territórios, a ser muitos e a multiplicar-se por toda a
terra. Então alguns foram viver no Oriente e outros foram para os territórios
do grande continente e para o Norte, de modo que se estenderam até a Bretanha,
nas regiões árticas; outros foram para a terra de Canaã, também chamada Judéia
e Fenícia, para os territórios da Etiópia, Egito e Líbia, e para a chamada zona
tórrida, até as regiões do Ocidente. Outros ocuparam a terra que vai da costa e
da Panfília, da Ásia, Grécia, Macedônia e, mais além, a Itália e as chamadas
Gálias, Espanhas e Germânias, de modo que agora toda a terra está cheia de seus
habitantes.
Portanto, o povoamento da terra
pelos homens se fez, no princípio, em três direções, para o Oriente, para o
meio-dia e para o Ocidente. Depois, com o afluxo de gerações humanas, foi
habitado o restante. Os historiadores ignoraram isso e querem dizer que o mundo
é esférico e comparável com um cubo! Mas como podem ser verdadeiros nisso, se
ignoram a criação do mundo e seu povoamento? Quando os homens aumentaram e se
multiplicaram conforme as regiões, como acabamos de dizer, também foram
povoadas as ilhas do mar e as outras regiões.
33 Quem dos chamados sábios, poetas e historiadores foi capaz de
dizer a verdade nessas coisas? Eles próprios são muito posteriores e introduzem
uma multidão de deuses, que também nasceram depois de muitos anos que as
cidades tinham sido fundadas. E também são posteriores aos reis, aos povos e às
guerras. Seria preciso que tivessem mencionado tudo, mesmo o que aconteceu
antes do dilúvio, sobre a criação do mundo, a formação do homem e o que
aconteceu depois, se é fato que os profetas dos egípcios ou os caldeus e outros
historiadores falaram pelo espírito divino e puro, e era verdade o que eles
anunciavam. E não só deveriam dizer-nos o passado e o presente, mas também
anunciar de antemão o futuro do mundo. Daí se demonstra que todos os outros
estão errados e que só nós, cristãos, possuímos a verdade, pois somos ensinados
pelo Espírito Santo, que nos falou pelos santos profetas e nos anuncia tudo
antecipadamente.
34 Quanto ao resto, procura investigar com empenho as coisas de
Deus, isto é, o que os santos profetas disseram, a fim de que, comparando o que
nós dizemos e o que os outros dizem, possas encontrar a verdade. Que os nomes
dos chamados deuses são apenas nomes de homens, como já apontamos antes,
podemos demonstrá-lo pelas histórias que eles próprios escreveram. Quanto às
suas imagens, que são fabricadas diariamente até hoje, são meros ídolos,
"obras de mãos humanas". Esses ídolos são cultuados por uma multidão
de homens insensatos, enquanto desprezam o Criador e Artífice do Universo, que
alimenta todo o ser que respira, acreditando em inúteis ensinamentos e
transmitindo uns aos outros, de pai para filho, uma doutrina errônea, cheia de
insensatez.
Deus, porém, Pai e Criador do
universo, não abandonou a humanidade, mas deu-lhe uma lei e lhe enviou seus
santos profetas, para anunciar e ensinar todo o gênero humano, a fim de que
cada um de nós viva vigilante e conheça que há um só Deus. Também nos ensinaram
a nos afastarmos da sacrílega idolatria, do adultério, do assassínio, da
fornicação, do roubo, da avareza, do perjúrio, da mentira, da ira e de toda
dissolução e impureza. E que aquilo que o homem não quer que façam a ele,
também ele não faça a ninguém. Dessa forma, ele deve praticar a justiça, para
escapar dos castigos eternos e se tornar digno da vida eterna que vem de Deus.
35 A lei divina não proíbe apenas adorar aos ídolos, mas também aos
elementos, ao sol, à lua e aos demais astros; também não se deve cultuar o céu,
a terra, ornar, as fontes, os rios, mas deve-se servir unicamente o Deus
verdadeiro e Criador do universo, com santidade de coração e intenção sincera.
Com efeito, a lei santa diz: "Não cometerás adultério, não matarás, não
roubarás, não levantarás falso testemunho, não desejarás a mulher do teu
próximo." Do mesmo modo os profetas. Salomão nos ensinou que não se deve
pecar nem por sinais ou piscar de olhos: "Que teus olhos vejam o que é direito,
que tuas pálpebras se inclinem sobre o que é justo." Moisés, que também é
profeta, diz sobre a uni cidade de Deus: "Este é O vosso Deus, aquele que
firmou o céu e alicerçou a terra, cujas mãos mostraram toda a milícia celeste,
mas não a mostou para que caminheis atrás dela."
Isaías também diz: "Assim
diz o Senhor, ele que firmou o céu e colocou os alicerces da terra e de tudo o
que ela contém, ele que dá respiração ao povo sobre ela e alento para os que a
pisam. Este é o Senhor vosso Deus." O próprio Isaías diz ainda: "Diz
o Senhor: Eu fiz a terra e o homem sobre ela; com minha mão firmei o céu".
E em outro capítulo: "Este é o vosso Deus, aquele que preparou os cumes da
terra; não terá fome, nem se fatigará, nem é possível encontrar a profundeza de
seu pensamento." Do mesmo modo Jeremias: "Aquele que fez a terra com
a sua força, que levantou o orbe com a sua sabedoria, que segundo o seu
pensamento estendeu o céu e grande quantidade de água no céu, reuniu as nuvens
dos confins da terra, fez relâmpagos para a chuva e tirou os ventos de seus
depósitos."
Cumpre notar que os profetas
disseram coisas bem coerentes e concordes, falando todos com um só e mesmo
espírito sobre a monarquia de Deus, a origem do mundo e a criação do homem. E
não só falaram, mas também sofreram dor, chorando sobre o gênero humano alheio
a Deus, denunciaram os sábios aparentes pelo erro em que viviam e endurecimento
do coração deles. Assim diz Jeremias: "Todo homem se tornou néscio por sua
ciência, todo fundidor de ouro se cobriu de vergonha por suas obras de
ourivesaria, em vão o cunhador de prata cunha moeda; não há alento neles;
perecerão no dia da visitação." Davi também diz a mesma coisa:
"Corromperam-se e se tornaram abomináveis em suas obras; não há quem
realize obras boas, não há um só. Todos se desviaram, todos unanimemente se
tornaram inúteis." Igualmente Habacuc: "Para que serve ao homem o que
ele grava? Ele gravou uma imaginação mentirosa. Ai daquele que diz à pedra:
'Levanta-te', e à madeira: 'Sustém-te'."
Do mesmo modo falaram os outros
profetas da verdade. Para que enumerar toda a multidão de profetas, que foram
muitos e disseram infinitas coisas, coerentes e concordes entre si? Os que
quiserem podem, lendo seus escritos, conhecer exatamente a verdade e não
extraviar-se em especulação e trabalho inútil. Portanto, esses foram os
profetas dos hebreus, dos quais falamos: homens iletrados, pastores e
ignorantes.
36 Quanto à Sibila, que foi profetisa entre os gregos e demais
nações, começa a sua profecia recriminando o gênero humano: "Homens
mortais e de carne, que não sois nada, como vos apressais a vos exaltar, sem
olhar para o fim da vida, e não tremeis,. nem temeis a Deus, que vos vigia,
conhecedor altíssimo, que tudo vê, testemunha de tudo, criador que tudo
alimenta, que infundiu em tudo doce alento e que se fez guia de todos os
mortais? Único Deus, que impera sozinho, máximo e não criado, onipotente,
invisível, e o único que tudo vê, embora não seja visto por nenhum olho de
carne. Com efeito, que carne pode ver com os olhos o celeste e verdadeiro, o
Deus imortal, que habita no eixo do mundo? Os homens, nascidos mortais, homens
apenas em seus ossos, veias e carnes, não podem olhar de frente sequer os raios
do sol.
Reverenciai àquele que é único,
ao guia do mundo, o único que foi para o eterno e desde o eterno. Nascido de si
mesmo, incriado, que tudo domina para sempre, que distribui julgamento a todos
os mortais em luz comum. Recebereis O justo pagamento do vosso mau querer, pois
deixando de glorificar ao Deus verdadeiro, à fonte perene e de oferecer-lhe
sagradas hecatombes, sacrificastes aos demônios do Hades. Caminhais no orgulho
e na loucura e, abandonando o caminho direito e reto, vos haveis desviado e
andais errantes entre os espinhos e estacas. Vãos mortais, cessai já de errar
entre sombras através da negra noite escura, abandonai a sombra da noite e
recebei agora a luz. Este é aquele que a todos se manifesta, ele não erra.
Vinde, não sigais a sombra e as trevas para sempre. Olhai: sobre tudo brilha a
doce luz do sol. Conhecei e coloca i sabedoria em vossos peitos: existe um
único Deus que nos envia chuvas, ventos, terremotos e relâmpagos, fomes, pestes
e lutos fúnebres, neve e geada... Para que citar tudo? Ele guia o céu e domina
a terra; unicamente ele existe."
E disse contra os que são
chamados deuses gerados: "Se todo o gerado se corrompe inteiramente, Deus
não pode ter sido formado dos músculos do homem e de matriz. Unicamente Deus,
porém, se ergue acima de tudo, ele que fez o céu, o sol, as estrelas e a lua, a
terra fértil em frutos, as ondas infladas do ponto, as altas montanhas e as
correntes perenes das fontes. Ele criou a incontável multidão de peixes dos
rios, alimenta também os répteis, que se arrastam sobre a terra, e as aves
variadas, de voz sonora e gorgeios, com plumagem dourada, de canto claro, que
turbam o ar com suas asas. Colocou a multidão de feras selvagens nas florestas
da montanha, submeteu a nós mortais todos os animais e para todos fez um guia
por sua mão formado, submetendo ao homem variedade incompreensível de coisas.
De fato, qual carne pode compreendê-Ias uma a uma?
Somente pode conhecê-Ias quem no
princípio as fez: o Imortal, o Criador e Eterno, que habita o éter, que oferece
aos bons o bom e pródigo pagamento, e aos maus e injustos reserva sua cólera e
ira, guerra e peste, dores e lágrimas. Homens, por que, inutilmente
envaidecidos, vos desenraizais? Envergonhai-vos de elevar gatos e insetos à
condição de deuses! Não é loucura e raiva que tira o bom-senso, existirem
deuses que roubam os pratos e carregam as panelas? Ao invés de morar no céu
dourado e florido, é visto comido pelo caruncho e coberto de espessas teias de
aranha. Insensatos, adorais serpentes, gatos e cães, e cultuais aves, répteis e
feras do campo, estátuas de madeira, imagens manufaturadas e montes de pedras
nos caminhos, quejá é vergonhoso apenas nomear. Esses são deuses enganosos dos
homens sem discernimento, de cuja boca veneno mortal se derrama; aquele Deus,
porém, que tem a vida e a luz imortal e perene derrama sobre os homens prazer
mais doce do que o mel...
Somente diante dele deve-se
inclinar a fronte, entrando nas sendas dos séculos piedosos. Tendo abandonado
tudo isso, essa taça cheia de justiça, vinho puro, abundante, plena sem mistura
alguma, a arrastastes em vossas loucuras, todos loucos de espírito, e mesmo
assim não quereis despertar, reaver mente sensata e conhecer a Deus rei, aquele
que tudo vê. Por isso, virá sobre vós uma chama de fogo abrasador e sereis
queimados em seu ardor para sempre, o dia todo, envergonhados de vossos ídolos
enganosos e inúteis; mas os que honram ao Deus verdadeiro e perene, herdarão
vida para sempre, habitando junto ao jardim florido do paraíso e comendo o doce
pão do céu estrelado." É evidente que isso é verdadeiro, proveitoso, justo
e digno de ser amado por todos os homens; também é evidente que aqueles que
praticam o mal serão necessa. riamente castigados, conforme mereçam as suas
ações.
37 Alguns poetas chegaram a falar a mesma coisa, como que emitindo
oráculos contra si mesmos e testemunhando contra aqueles que fazem o mal,
dizendo que serão castigados. Ésquilo diz: "Aquele que faz, também deve
sofrer". Píndaro diz também: "Pois aquele que fez algo convém que
também sofra." Igualmente Eurípides: "Suporta o que sofrer, pois fazendo
gozaste. É uma lei maltratar o inimigo se o pegas". Ele mesmo diz
novamente: "Causar danos aos inimigos: creio que isso é ser homem."
De modo semelhante Arquíloco: "Eu conheço uma grande coisa: àquele que me
fez algum mal, responder com um mal maior."
Sobre o fato de que Deus tudo vê
e nada lhe é oculto, mas que, sendo misericordioso, espera pelo momento de
julgar, Dioniso diz: "O olho da Justiça olha com rosto tranqüilo, mas vê
tudo ao mesmo tempo." Que deverá haver julgamento e que os malvados se
tornarão repentinamente presa dos males, Ésquilo também o deu a entender,
dizendo: "A desgraça chega até os mortais com pés velozes, conforme o
pecado de quem ultrapassa o lícito. Vês ajustiça silenciosa e invisível para
aquele que dorme, que caminha, que se assenta. Cedo ou tarde, ela te alcança na
encruzilhada. Não esconde a noite para aquele que realiza o mal. Ao fazer
alguma coisa de mal, pensa que alguém a está vendo."
E Simônides também diz:
"Não existe desgraça inesperada para os homens; em pouco tempo Deus
transtorna tudo". De novo Eurípides: "Nunca se deve considerar como
coisa sólida a fortuna do homem mau, nem a felicidade excessiva, nem a raça dos
injustos, pois o tempo, que não nasceu de ninguém, manifesta as maldades dos
homens." Ainda Eurípides: "A divindade não é sem inteligência, mas
pode distinguir os juramentos falsos e os que a eles se obrigam." E
Sófocles: "Se agiste mal, também deves sofrer o mal." Que Deus
examinará todo juramento injusto e qualquer outro pecado, os poetas quase o
disseram, assim como falaram, querendo ou sem querer, coisas concordes com os
profetas sobre a conflagração do mundo, apesar de serem muito posteriores a
estes e de terem tirado tudo isso da lei e dos profetas.
38 Não importa se foram anteriores ou posteriores. O importante é
que falaram de acordo com os profetas. Sobre a conflagração, por exemplo, o
profeta Malaquias predisse: "Eis que chega o dia do Senhor como fornalha
ardente e abrasará todos os ímpios." E Isaías: "A ira do Senhor virá
como granizo que cai com violência e como água no vale que arrasta tudo." Portanto,
a Sibila, os outros profetas, e até os filósofos e poetas falaram claramente
sobre a justiça, sobre o julgamento e o castigo. Falaram também sobre a
providência, que Deus cuida de nós não apenas enquanto vivemos, mas também
depois de mortos, embora o dissessem contra a vontade, convencidos que foram
pela própria verdade.
Entre os profetas, Salomão disse
sobre os mortos: "A carne será curada e os ossos serão cuidados." E o
próprio Davi: "Meus ossos humilhados se regozijarão." De acordo com
eles, disse Tímocles: "Para os mortos, a misericórdia é o Deus
benigno." Os escritores que falaram sobre a multidão dos deuses acabaram
por admitir a unicidade ou monarquia de Deus; aqueles que afirmaram a
não-providência, depois falaram sobre a providência; aqueles que negaram o
julgamento, mais tarde o afirmaram; aqueles que negaram a sensação após à
morte, depois a confessaram. Homero, por exemplo, diz em uma passagem: "A
alma, como um sonho, alçou vôo e partiu."
Em outra passagem: "A alma,
saindo dos membros, voou para o Hades." Ainda: "Enterra-me quanto
antes, pois quero atravessar as portas do Hades." Creio que sabes
perfeitamente como falaram os outros autores que leste. Aquele que busca a
sabedoria de Deus e que lhe agrada pela fé, justiça e boas obras entenderá tudo
isso. Com efeito, um dos profetas dos quais falamos, chamado Oséias, diz o
seguinte: "Quem é sábio e conhecerá estas coisas, inteligente e as
entenderá? Porque os caminhos do Senhor são retos e os justos entrarão neles,
mas os ímpios cairão de fraqueza nesses caminhos." É preciso que quem ama
o saber, aprenda. Portanto, procura ter conversas mais freqüentes, para que,
ouvindo de viva voz, aprendas com exatidão a verdade.
LIVRO 3
1 Teófilo a Autólico: Saudações. Os escritores querem escrever
multidões de livros por vanglória; alguns sobre os deuses, as guerras e os
tempos; outros sobre fábulas inúteis e trabalho vão, em que também tu te
exercitaste até agora. Certamente não vacilas em suportar esse trabalho. Por
outro lado, conversando conosco, ainda continuais crendo que a nossa doutrina
da verdade é tolice, alegando que nossas Escrituras são recentes e novas.
Diante disso tudo, eu também não vacilarei em tratar novamente, com a ajuda de
Deus, desde o princípio, a questão da antiguidade de nossas Escrituras, a
apresentantar-te um breve resumo, a fim de que não te enfades ao lê-lo e também
conheças a inanidade dos outros autores.
2 Os escritores deviam ter sido eles próprios testemunhas oculares
do que afirmam ou ter sabido exatamente daqueles que viram, pois escrever sobre
o incerto é, de algum modo, açoitar o ar. De que adiantou Homero ter descrito a
guerra de Tróia e enganar a muitos, ou Esíodo na sua Teogonia ter feito o
catálogo e descrito as origens daqueles que ele chama deuses? Ou Orfeu com os
seus trezentos e sessenta e cinco deuses, que ele rejeita no fim da vida, pois
afirma em seus Testamentos que existe um só Deus? De que adiantou a Arato a sua
esferografia do céu cósmico ou para aqueles que tiveram as mesmas opiniões, a
não ser ter alcançado entre os homens uma glória que nem sequer mereceram? O
que eles disseram de verdadeiro?
Que proveito tiveram Euripedes,
Sófocles e os outros trágicos com suas tragédias, ou Menandro, Aristófanes e
outros cômicos, ou Heródoto e Tucídides com sua histórias, ou Pitágoras com
seus templos e as colunas de Hércules, ou Diógenes com sua filosofia cínica, ou
Epicuro com seu dogmatismo contra a providência, ou Empédocles com suas
doutrinas atéias, ou Sócrates com seus juramentos pelo cão, o ganso, o plátano
e o fulminado Asclépio e pelos demônios a quem invocava? Além disso, por que
morreu voluntariamente e que recompensa esperava receber depois da morte? De
que serviu a Platão a educação que ele instituiu, ou de que serviram para os
outros filósofos as suas doutrinas? Não farei a lista completa, pois são
muitos. Dizemos isso para demonstrar o teor inútil e ateu de suas especulações.
3 O fato é que, sendo todos ambiciosos de vanglória, nem eles
conheceram a verdade, nem conduziram ou estimularam outros a ela. Eis que eles
são acusados pelos seus próprios discursos, pois disseram coisas contraditórias
e, além disso, a maioria deles destruiu suas próprias doutrinas. Isto é: não só
lançaram por terra uns aos outros, mas alguns invadiram seus próprios dogmas,
de modo que sua glória acabou na desonra e loucura, pois são condenados pelos
homens inteligentes. Primeiro falaram dos deuses, e depois ensinaram o ateísmo;
falaram sobre a origem do mundo e acabaram dizendo que o acaso é a lei
universal; por fim, começam falando da providência, e depois dogmatizam que o
mundo não tem providência.
E o que mais? Não é certo que,
tentando escrever sobre a pureza, ensinaram a praticar os mais odiosos atos de
impudor? São justamente os seus deuses os primeiros que eles anunciam ter
praticado as uniões desonestas e festins sacrílegos. Quem não canta Cronos como
devorador de seus filhos? E Zeus, seu filho, que devora Métis e prepara
abomináveis convites para os deuses? Depois, nos contam de um tal Efesto, coxo
e ferreiro, que o serve à mesa; e de Hera, irmã de Zeus, que não só se casa com
ele, mas também comete desonestidades com sua boca impura. Suponho que saibas
das demais ações dele que os poetas cantam. Que necessidade tenho de enumerar o
que se refere a Posêidon, a Apolo, Dionísio e Héracles, ou de Atena, a
guerreira, e Afrodite, a desavergonhada? Disso tratamos mais detalhadamente em
outro livro.
4 Eu nem deveria estar refutando essas coisas, se não fosse porque
te vejo agora duvidando sobre a doutrina da verdade. Mesmo sendo sensato,
suportas de boa vontade os ignorantes. De outra forma, não terias deixado
desviar-te pelos vãos discursos de homens insensatos, nem acreditado nesse
boato preconceituoso de bocas ímpias, que mentirosamente caluniam a nós, que
adoramos a Deus e nos chamamos cristãos, espalhando que temos mulheres em comum
e que não nos importamos com quem nos unimos; além disso, dizem que mantemos
relação carnal com nossas próprias irmãs e, o que é mais ímpio e cruel, que nos
alimentamos de carnes humanas. Dizem ainda que nossa doutrina é recente e que
nada temos para alegar como demonstração de nossa verdade e ensinamento. Por
fim, dizem que toda a nossa doutrina é pura loucura. Ora, mais do que tudo,
fico admirado contigo, pois sendo no resto diligente e pesquisador de todas as
coisas, somente a nós ouves com descuido, tu que, tendo possibilidade, não
hesitarias em passar até as noites nas bibliotecas!
5 Muito bem. Já que leste muito, que achas dos conteúdos do livro
de Zenão, de Diógenes e de Cleantes, que ensinam a antropofagia, dizendo que os
pais devem ser cozidos por seus próprios filhos e comidos por estes, e que se
alguém se nega a comer ou joga um membro qualquer dessa abominável comida,
deve-se comer aquele que não come? Ainda se encontra uma voz mais ímpia, a de
Diógenes, que ensina os filhos a levar seus próprios pais para serem
sacrificados e depois comê-los. O que mais? O historiador Heródoto não conta
que Cambises degolou os filhos de Harpago e os serviu cozidos para o pai?
Também conta que entre os indianos os pais são comidos por seus filhos. Que
ímpio ensinamento dessas pessoas que registram tais coisas e até as professam!
Que impiedade o ateísmo, que especulações, daqueles que filosofam tão
acuradamente e propagam filosofia. Com efeito, os que espalham tais doutrinas
encheram o mundo de impiedade.
6 De fato, no que se refere à união ilegítima, todos os que se
extraviaram no coro dos filósofos estão de acordo. Em primeiro lugar Platão,
que dentre eles parece ser o que filosofou com mais profundidade. No livro
primeiro da República legisla expressamente, digamos assim, que as mulheres de
todos devem ser comuns, alegando o exemplo de Minos, filho de Zeus e legislador
dos cretenses, a fim de que, sob esse pretexto, os nascimentos sejam numerosos
e que, com tais costumes, sejam consolados os que se acham tristes. Além disso,
Epicuro, não contente de ensinar o ateísmo, aconselha a relação carnal com mães
e irmãs, mesmo transgredindo as leis que o proíbem. Sólon também legislou com
toda clareza sobre isso, dizendo que os filhos devem nascer de matrimônio
legítimo e não de adultério, para que não se honre como pai aquele que não é
pai e se desonre, por ignorância, aquele que o é. Digamos o mesmo do resto que
as leis dos romanos e gregos proíbem. Então, com que finalidade Epicuro e os
estóicos afirmam como dogma as uniões de irmãos e a pederastia e encheram as
bibliotecas com esses ensinamentos, para que se aprenda a união ilegítima desde
criança? Não compensa, porém, gastar o tempo com isso, pois propagam coisas
semelhantes a respeito do que eles chamam deuses.
7 Com efeito, depois de afirmar a existência dos deuses, em seguida
os reduzem a nada. Porque uns afirmaram que se compõem de átomos; outros, que
vão dar nos átomos e que eles não têm mais poder do que os homens. Platão,
depois de dizer que os deuses existem, quer que eles sejam compostos de
matéria. Pitágoras, que se fatigou tanto sobre o problema dos deuses, que
viajou de um lado para outro, por fim separa a natureza e diz que é o acaso que
rege tudo e que os deuses não se importam em nada com os homens. E o que
excogitou o acadêmico Clitômaco para demonstrar o ateísmo! O que falar de
Crítias e Protágoras de Abdera, que diz: "Sobre os deuses, não posso dizer
se existem, nem manifestar qual seja sua natureza, pois existem muitas coisas
que me impedem". Seria supérfluo citar as teorias do ímpio Evêmero que,
atrevendo-se a falar longamente sobre os deuses, termina dizendo que
absolutamente não existem, e quer que tudo seja governado pelo puro acaso.
Platão, que falou tantas coisas
sobre a monarquia de Deus e sobre a alma do homem, afirmando que ela é imortal,
depois também não se contradiz, dizendo que as almas emigram para outros homens
e que as almas de alguns vão parar até em animais irracionais? Como é que tal
doutrina não se mostrará funesta e sacrílega para os que possuem inteligência
sã, isto é, que quem foi homem se transforme em lobo, cão, asno ou qualquer
outro animal irracional? Encontramos tolices semelhantes naquilo que Pitágoras
disse, além de eliminar a providência. Então, em que vamos acreditar? No cômico
Filêmon, que diz: "Porque os que honram a Deus têm belas esperanças de
salvar-se", ou nos citados Evêmero, Epicuro, Pitágoras e outros que negam
haver religião e destroem a providência? Em todo caso, eis o que Ariston diz
sobre Deus e a providência:
"- Coragem! É costume de
Deus ajudar aqueles que o merecem e de modo poderoso. De fato, se não existisse
uma preeminência estabelecida para os que vivem como se deve, para que serviria
a religião?
- Deveria ser assim, mas com
muita freqüência vejo aqueles que se decidem viver religiosamente fazê-lo de
modo estranho, enquanto os que buscam apenas o próprio interesse levam
existência mais honrosa que nós.
- Talvez no presente. Contudo, é
preciso olhar mais longe e esperar a transformação de todas as coisas. Esta não
será como na opinião funesta e perniciosa à vida, que se fortaleceu entre
alguns, segundo a qual tudo é puro ímpeto do acaso e tudo se decide conforme
aparece. Sem dúvida, os ímpios julgam que isso traz vantagem para seus próprios
interesses. Entretanto, há também uma preeminência para os que vivem santamente
e para os ímpios, como convém, um desejo. Porque sem providência não acontece
nada".
Quanto ao que os outros disseram
sobre Deus e a providência, e pode-se dizer que são a maioria, pode se ver como
suas doutrinas são contraditórias. Uns eliminaram completamente Deus e a
providência; outros, ao contrário, admitem Deus e confessam que tudo é
governado por uma providência. Portanto, o ouvinte ou leitor inteligente deve
prestar acurada atenção ao que se diz, de acordo com Similo: "Comumente se
costuma chamar de poetas tanto aqueles que são naturalmente mal dotados e os de
excelentes dotes. Dever-se-ia fazer distinção". A mesma coisa Filêmon:
"É insuportável um ouvinte néscio ali sentado. Por sua tolice nunca
repreende a si mesmo". Deve-se, portanto, prestar atenção e compreender o
que se diz, examinando anteriormente as afirmações dos filósofos e demais
poetas.
8 De fato, começam negando a existência dos deuses, depois a
confessam e nos contam que eles praticam ações abomináveis. Zeus é o primeiro.
Aí estão os poetas que proclamam suas ações em versos melodiosos. Não foi o
grande charlatão de Crisipo que mostrou que Hera uniu-se a Zeus por sua impura
boca? Para que enumerar as impudicícias da chamada mãe dos deuses, ou de Zeus
Lacial, sedento de sangue humano, ou de Atis, o mutilado? Ou aquele Zeus, com o
sobrenome de Trágico, que queimou sua própria mão, como dizem, e agora é
honrado como deus entre os romanos? Passo em silêncio os templos de Antino e
dos outros pretensos deuses. Essas histórias todas são motivo de riso para os
homens inteligentes. Na verdade, os que professam tal filosofia são levados ao
ateísmo por suas próprias doutrinas, assim como à poligamia e à inversão. Além
disso, em seus escritos encontrase a antropofagia, e os primeiros que fizeram
tudo isso são os deuses que eles honram.
9 Nós, porém, confessamos a Deus, mas um só, o criador, o autor e
artífice de todo este mundo, e sabemos que tudo é governado por sua
providência, mas somente pela sua. E aprendemos uma lei santa, mas temos como
legislador o verdadeiro Deus, que nos ensina a agir justa, religiosa e
santamente. Sobre a religião e a piedade ele diz: "Não terás deuses
estranhos além de mim. Não fabricarás para ti imagem alguma de tudo o que há
acima no céu, nem abaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não os
adorarás, nem os servirás, porque eu sou o Senhor teu Deus". Sobre o agir
santamente ele diz: "Honra teu pai e tua mãe, para que tudo te corra bem e
tenhas longa vida sobre a terra que eu te dou, eu o Senhor Deus". E sobre
a justiça: "Não cometerás adultério. Não matarás. Não roubarás. Não
levantarás falso testemunho contra o teu próximo.
Não cobiçarás a mulher do teu
próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o seu escravo, nem a sua escrava,
nem o seu boi, nem o seu jumento, nem qualquer animal seu, nem qualquer coisa
que pertença ao teu próximo. Não distorcerás o julgamento ao julgar o pobre. Tu
te afastarás de toda palavra injusta. Não matarás o inocente e justo. Não
absolverás o ímpio, nem aceitarás suborno, pois o suborno cega os olhos dos que
vêem e destroem as palavras justas". O ministro dessa lei santa foi Moisés,
também servo de Deus. Foi dada para o mundo inteiro, embora primeiro para os
hebreus, também chamados judeus. O rei do Egito os havia reduzido à escravidão,
apesar de serem uma descendência justa de homens religiosos e santos, de
Abraão, de Isaac e Jacó. Deus, porém, lembrou-se deles e, realizando maravilhas
e prodígios por meio de Moisés, libertou-os milagrosamente e os tirou do Egito,
conduzindo-os através do assim chamado deserto, e finalmente os estabeleceu na
terra de Canaã, que depois foi chamada Judéia, deu-lhes a lei e lhes ensinou
tudo isso. Os dez pontos principais dessa grande e admirável lei, que vale para
toda a justiça, são os que acabamos de citar.
10 Os judeus residiram no Egito como estrangeiros, pois de raça
eram hebreus procedentes da Caldéia. Tendo havido naquele tempo uma fome,
tiveram que emigrar para o Egito, a fim de comprar mantimentos e com o tempo aí
se estabeleceram. Então aconteceu a eles conforme a predição de Deus. Depois de
viverem como forasteiros no Egito durante quatrocentos e trinta anos, quando
Moisés os levou para o deserto, Deus lhes ensinou por meio da lei, dizendo:
"Não oprimirás o estrangeiro, porque vós conheceis a alma do estrangeiro,
pois fostes estrangeiros na terra do Egito".
11 Ora, o povo transgrediu a lei que lhe fora dada. Deus, porém,
que é bom e misericordioso, não querendo que perecessem, além de ter-lhes dado
a lei, mandou-lhes depois profetas dentre seus irmãos, para que lhes ensinassem
e recordassem as coisas da lei e levá-los à penitência para que não pecassem
mais. Contudo, como eles se obstinassem em suas más ações, os profetas lhes
predisseram que seriam submetidos a todos os remos da terra. E é evidente que isso
lhes aconteceu. Portanto, sobre a penitência, o profeta Isaias diz a todos em
geral, mas particularmente ao povo: "Buscai o Senhor e, ao encontrá-lo,
invocai-o. Quando ele se aproximar de vós, que o ímpio abandone os próprios
caminhos e o homem iníquio seus conselhos, e convertam-se ao Senhor seu Deus.
Ele se compadecerá e largamente perdoará os vossos pecados".
Ezequiel, outro profeta, diz:
"Se o iníquo se converte de todas as iniqüidades que praticou, guarda os
meus mandamentos e pratica a minha justiça, viverá com vida e não morrerá; não
se lembrará de todas as iniqüidades que praticou, mas viverá pela justiça que
praticou, porque eu não quero a morte do iníquo, diz o Senhor, e sim que ele se
converta de seu mau caminho e viva". E Isaías acrescenta: "Convertei-vos,
vós que alimentais um desígnio que conduz ao abismo e ao crime, para que vos
salveis". E Jeremias diz: "Convertei-vos ao Senhor vosso Deus, como o
vindimador ao seu cesto, e encontrareis misericórdia". Muitas outras coisas,
ou melhor, coisas inumeráveis dizem as santas Escrituras sobre a penitência,
pois Deus sempre quer que o gênero humano se converta de todos os seus pecados.
12 Além disso, sobre a justiça de que a lei fala, vemos que os
profetas e os evangelhos estão de acordo, pois todos, portadores de espírito,
falaram pelo único Espírito de Deus. Isaias diz o seguinte: "Tirai as
maldades de vossas almas, aprendei a fazer o bem, buscai o direito, libertai o
oprimido, julgai o órfão e fazei justiça à viúva". E ainda: "Desata
as amarras da iniqüidade, rompe os laços dos contratos violentos, deixa ir os
oprimidos em liberdade, rasga todo contrato injusto, reparte o teu pão com o faminto
e recolhe em tua casa os mendigos sem teto. Se vês alguém nu, veste-o, e não te
afastes com desprezo daqueles que pertencem à tua própria descendência. Então a
tua luz brilhará como a aurora, tuas feridas logo serão curadas e tua justiça
caminhará diante de ti".
De modo semelhante Jeremias diz:
"Parai nos caminhos, olhai e perguntai qual é o caminho do Senhor vosso
Deus, o caminho bom; caminhai por ele e encontrareis descanso para vossas
almas. Daí sentenças justas, porque essa é a vontade do Senhor vosso
Deus". De modo semelhante também Oséias diz: "Observai o direito e
aproximai-vos do Senhor vosso Deus, que firmou o céu e alicerçou a terra".
Joel, outro profeta, de acordo com eles, diz: "Reuni o povo, santificai a
assembléia, recebei os anciãos, juntai as crianças que mamam nos peitos; que o
esposo saia de seu quarto nupcial e a esposa de seu leito; rogai com
insistência ao Senhor vosso Deus, a fim de que ele se compadeça de vós, e ele
apagará vossos pecados". Do mesmo modo Zacarias, outro profeta, diz:
"Eis as palavras do Senhor Onipotente: julgai com verdadeira justiça e
cada um pratique a misericórdia e a compaixão com o seu próximo; não oprimais a
viúva, o órfão e o estrangeiro; não guardeis rancor em vossos corações contra o
vosso irmão, diz o Senhor Onipotente".
13 Quanto à pureza, a palavra santa não só nos ensina a não pecar
por atos, mas também por pensamento, sequer pensar em nosso coração sobre
alguma coisa má ou desejar a mulher alheia, olhando-a com os olhos. Com efeito,
Salomão, que foi rei e profeta, diz: "Que teus olhos vejam o que é reto e
tuas pálpebras se inclinem para o que é justo; que teus pés só percorram o
caminho reto". E a voz do Evangelho diz ainda mais expressamente sobre a
castidade: "Todo aquele que olha a mulher alheia para desejá-la, já
cometeu adultério com ela em seu coração. Aquele que se casa com a que foi
repudiada por seu marido, comete adultério; e aquele que repudia sua mulher,
exceto pelo motivo de fornicação, faz com que ela cometa adultério".
Salomão diz ainda: "Pode alguém carregar fogo em sua veste e não queimar a
sua roupa? Ou caminhar sobre brasas e não queimar os pés? Do mesmo modo, quem
entra na casa da mulher casada não será inocente".
14 Quanto a não termos benevolência apenas com os de nosso próprio
grupo, como pensam alguns, o profeta Isaias diz: "Dizei aos que vos odeiam
e abominam: 'Sois nossos irmãos', a fim de que seja glorificado o nome do
Senhor e seja visto na alegria deles". E o Evangelho diz: "Amai os
vossos inimigos e orai pelos que vos caluniam. Com efeito, se amais os que vos
amam, que recompensa tendes? Também os salteadores e publicanos fazem
isso". Aos que praticam o bem, ele os ensina a não se glorificar, a fim de
não agradarem aos homens: "Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a
tua mão direita". A palavra divina também manda que nos submetamos aos
magistrados e autoridades e a orar por eles, a fim de levar uma vida calma e tranqüila.
Também nos ensina a dar a todos o que lhes convém. A honra, a quem se deve a
honra; o temor, a quem se deve o temor; o tributo, a quem se deve o tributo; e
não dever nada a ninguém, mas apenas amar a todos.
15 Considera, portanto, se aqueles que recebem tais ensinamentos
podem viver indiferentemente ou manchar-se com uniões ilegítimas, ou então, o
que supera toda impiedade, alimentar-se de carnes humanas. Na verdade, somos
proibidos até de assistir aos espetáculos de gladiadores, a fim de não
participarmos e não nos tornarmos cúmplices daquelas mortes. Também não devemos
ver os outros espetáculos, para que nossos olhos e ouvidos não fiquem impuros
ao participar do que ali se canta. De fato, se se fala de antropofagia, ali são
devorados os filhos de Tiestis e Tereu; se se fala de adultério, ali se
representam tragédias em que não só os homens as cometem, mas também os
próprios deuses. Coisas que são contadas em versos melodiosos e não sem honras
e prêmios.
Longe dos cristãos sequer
passar-lhes pelo pensamento fazer essas coisas. Entre eles há temperança,
exercita-se a continência, observa-se a monogamia, guarda-se a castidade,
aniquila-se a injustiça, arranca-se o pecado pela raiz, medita-se a justiça,
cumpre-se a lei, pratica-se a religião, confessa-se a Deus, a verdade decide
como árbitro, a graça guarda, a paz protege, a palavra santa dirige, a
sabedoria ensina, a vida decide e Deus reina. Poderíamos dizer muito mais
coisas sobre o comportamento que se vive entre nós e sobre as justificaçôes de
Deus, artífice de toda criatura. Por enquanto, porém, basta o que recordamos, a
fim de que tu o saibas, sobretudo pelo que lês até agora e, já que foste
estudioso até o presente, o sejas também daqui para frente.
16 Quero agora mostrar-te com mais precisão, com a ajuda de Deus,
nossa posição no tempo, para que reconheças que a nossa doutrina não é recente,
e nem fabulosa, e sim mais antiga e verdadeira do que todos os poetas e
historiadores que escreveram sobre o incerto. Uns, dizendo que o mundo era
incriado, terminaram no infinito; outros, que o disseram criado, falaram que já
se haviam passado quinze miríades e três e setecentos e cinco anos. Isso é
contado por Polônio, o egípcio. Platão, que parece ter sido o mais sábio dos
gregos, por quantas tolices não enveredou? Na chamada República encontra-se
literalmente: "Se as coisas permaneceram o tempo todo dispostas como estão
agora, como se poderia encontrar alguma coisa de novo?
É que durante uma miríade de
miríades de anos as pessoas não perceberam o tempo e só há mil ou dois mil anos
tornaram-se manifestas as primeiras descobertas, umas por Dédalo, outras por
Orfeu, e outras por Palamedes". Dizendo que assim aconteceu, ele mostra
que do dilúvio até Dédalo passou-se uma miríade de miríades de anos. Depois de
falar longamente de cidades espalhadas pelo mundo, de habitantes e povos, ele
confessa que falou de tudo isso por conjectura. De fato, ele diz: "Em todo
caso, estrangeiro, se um deus nos prometesse começar de novo as discussões
sobre as leis, das palavras agora ditas..." É claro que falou por
conjectura e, se falou por conjectura, o conseqüentemente que ele disse não é
verdade.
17 Portanto, vale mais tornar-se discípulo da lei divina. O próprio
Platão reconheceu o que não é possível aprender de outra maneira que é exato, a
não ser que Deus nos ensine pela lei. Além disso, os próprios poetas Homero,
Hesíodo e Orfeu não disseram que foram ensinados pela presciência divina? E
dizem ainda que no tempo dos historiadores houve adivinhos e conhecedores do
futuro e que aqueles que aprenderam com eles escreveram com exatidão. Tanto
mais não saberemos nós a verdade, que aprendemos com os santos, profetas, os
quais receberam o santo Espírito de Deus?
É por isso que todos os profetas
disseram coisas que concordavam entre si e anunciaram de antemão o que deveria
acontecer para todo o mundo. Com efeito, o cumprimento das coisas anteriormente
anunciadas e que agora se realizam pode muito bem ensinar aos estudiosos, ou
melhor, aos amantes da verdade, que também são verdade as coisas por eles ditas
a respeito dos tempos e situações anteriores ao dilúvio, desde a criação do
mundo até hoje, junto com a computação dos anos, demonstrando assim a
charlatanice enganadora dos historiadores e que não é verdade o que estes
disseram.
18 Platão, como dissemos antes, depois de afirmar que houve
dilúvio, disse que não atingiu toda a terra, mas só as planícies, e que os que
fugiram para as montanhas mais altas se salvaram. Outros dizem que existiram
Deucalião e Pirra, que somente estes se salvaram numa arca, e que Deucalião,
depois de sair da arca, foi jogando pedras para trás e que dessas pedras nasceram
homens. Dizem que é daí que vem o nome "povos" dado à multidão de
homens. Outros disseram que Climeno existiu por ocasião do segundo dilúvio. É
evidente que aqueles que escreveram essas coisas e assim inutilmente
filosofaram sejam miseráveis, totalmente ímpios e néscios. Ao contrário, nosso
profeta explicou como aconteceu o dilúvio, sem ter que inventar um Deucalião,
ou uma Pirra, ou Climeno, nem que se deu apenas nas planícies e salvando-se
somente os que se refugiaram nas montanhas.
19 Também não disse que houve um segundo dilúvio; ao contrário,
disse que não acontecerá no mundo outro dilúvio de água, como de fato não
houve, nem haverá. Conta que foram oito pessoas que se salvaram na arca,
construída por ordem de Deus não através de Deucalião, mas por aquele que em
hebraico se chama Noé e é interpretado em grego como "descanso". Em
outro livro, mostramos como Noé, anunciando aos homens que o dilúvio viria,
profetizou-lhes, dizendo: "Vinde, Deus vos chama à penitência". Por
isso, com toda a propriedade, foi chamado Deucalião. Esse Noé tinha três
filhos, como mostramos no segundo livro, cujos nomes eram Sem, Cam e Jafé. Cada
um deles tinha sua mulher, assim como Noé tinha a sua. Alguns dão o nome de
Eunuco a esse homem.
Portanto, no total, se salvaram
oito vidas humanas, aquelas que se encontravam na arca. Moisés mostrou que o
dilúvio durou quarenta dias e quarenta noites, durante os quais as cataratas do
céu se romperam e todas as fontes do abismo jorraram, de modo que a água se
ergueu quinze côvados acima dos montes mais altos. Desse modo todo o gênero
humano então existente pereceu, salvando-se apenas os oito que foram
preservados na arca, dos quais falamos antes. Os restos dessa arca até hoje são
mostrados nos montes da Arábia. Essa é, em resumo, a história do dilúvio.
20 Como já dissemos antes, Moisés conduziu os judeus, quando estes
foram expulsos do Egito pelo rei faraó, cujo nome é Tetmósis. Segundo dizem,
depois da expulsão do povo, este reinou vinte e cinco anos e quatro meses,
conforme a contagem de Maneton. Depois dele, Cebron reinou treze anos; depois
deste, reinou Amenófis por vinte anos e sete meses; depois deste, sua irmã
Amesa reinou vinte e um anos e um mês; depois dela, Mefres reinou doze anos e
nove meses; depois, Meframutósis reinou vinte anos e dez meses; depois deste,
Titmósis reinou nove anos e oito meses; depois deste, Damfenófis reinou trinta
anos e dez meses; depois deste, Oros reinou trinta e cinco anos e cinco meses;
a filha deste reinou dez anos e três meses; depois dela, reinou Merqueres
durante doze anos e três meses; depois, Armais reinou quatro anos e um mês;
depois deste, Ramsés reinou um ano e quatro meses; depois Messes, filho de
Miamo, reinou seis anos e dois meses; depois deste, Amenófis reinou dezenove
anos e seis meses; depois Seto e Ramsés, que reinaram dez anos, os quais tinham
fama de possuir grandes forças de cavalaria e grande frota em seu tempo.
Quanto aos hebreus, que naquele
tempo viviam como forasteiros no Egito, submetidos à escravidão pelo rei
Tetmósis, do qual falamos, construíram para ele as cidades fortificadas de
Peito, Ramesen e On, que é Heliópolis. Assim se demonstra que os hebreus são
mais antigos do que as mais famosas cidades daquela época entre os egípcios.
Eles são os nossos antepassados e deles recebemos também os livros sagrados que
são, como já dissemos, mais antigos do que todos os historiadores. O Egito
deriva seu nome do rei Seto, pois dizem que Seto equivale a Egito. Seto tinha
um irmão chamado Armais. É este que é chamado de Dânaos, e foi ele que veio do
Egito para Argos; dele fazem menção todos os historiadores como sendo muito
antigo.
21 O egípcio Maneton, depois de muitas tolices e até injúrias
contra Moisés e os hebreus que o acompanhavam, insinuando que foram expulsos do
Egito como leprosos, não soube dizer exatamente a época. Chamando os hebreus de
pastores e inimigos dos egípcios, disse que eram pastores forçados, convencido
pela verdade. De fato, nossos antepassados foram pastores, habitando como
peregrinos no Egito, mas não leprosos. Com efeito, ao chegarem à terra chamada
Jerusalém, onde em seguida habitaram, é claro como seus sacerdotes, que
permaneciam no templo por ordem de Deus, curavam toda enfermidade, entre elas a
lepra e qualquer outro defeito. O templo foi construído por Salomão, rei da
Judéia.
É evidente que Maneton se
equivoca na cronologia por suas próprias palavras, e também a respeito de quem
os expulsou, cujo nome era Faraó. Ele não reinou mais sobre os egípcios, pois,
saindo em perseguição aos hebreus, afogou-se com o seu exército no mar
Vermelho. Ele também se equivoca dizendo que aqueles que ele chama de pastores,
guerrearam contra os egípcios, porque eles saíram do Egito e povoaram a terra
que agora se chama Judéia, trezentos e treze anos antes da chegada de Dânaos a
Argos. E claro que este é tido como o mais antigo pela maior parte dos
escritores gregos. Através de seus escritos, mesmo sem querer, Maneton disse a
verdade em dois pontos: em tê-los chamado de pastores e afirmado que saíram do
Egito. Por esses dados fica demonstrado que Moisés e os seus são novecentos ou
mil anos anteriores à guerra de Tróia.
22 Sobre a construção do templo da Judéia, edificado pelo rei
Salomão quinhentos e sessenta e seis anos depois da saída do Egito, entre os
tírios se guardam documentos de como ele foi construído; nos arquivos deles
conservam-se escritos onde consta que o templo foi construído cento e trinta e
quatro anos e oito meses antes da fundação de Cartago pelos tírios. Esses
documentos foram consignados pelo rei dos tírios chamado Hiéramo ou Hiram,
filho de Abibal, rei dos tírios, pois este, por tradição paterna, tornou-se
amigo de Salomão, também por causa da extraordinária sabedoria de Salomão. Um e
outro se exercitavam continuamente com os problemas e disso dão testemunho as
cartas que dizem ainda estar conservadas entre os tírios; e também enviavam
escritos um ao outro. O mesmo é lembrado por Menandro de Éfeso em suas
histórias dos reis de Tiro, onde ele diz:
"Quando morreu Abibal, rei
dos tírios, seu filho Hieromo herdou o reino e viveu cinqüenta e três anos. A
este sucedeu Bazoro, que viveu quarenta e três anos e reinou dezessete. Depois
dele, veio Metnastarto, que viveu cinqüenta e quatro anos e reinou nove. Os
quatro filhos de sua nutriz conspiraram contra ele e o mataram; o maior dos
conjurados reteve a coroa durante doze anos. Depois deles, Astarto, filho de
Deliostarto, viveu cinqüenta e quatro anos e reinou doze. Depois dele, seu
irmão Atárimo viveu cinqüenta e oito anos e reinou nove. Este foi morto pelo
seu irmão chamado Heles, que viveu cinqüenta anos e reinou oito. Foi morto por
Iutobal, sacerdote de Astarte, que viveu cinqüenta anos e reinou doze. Depois
dele, veio seu filho Bazoro, que viveu quarenta e cinco anos e reinou sete.
Meten, filho deste, viveu trinta e dois anos e reinou vinte e nove. A ele
sucedeu Pigmalião, que viveu cinqüenta e seis anos e reinou sete. No sétimo ano
do seu reinado, sua irmã fugiu para a Líbia e edificou a cidade que até hoje se
chama Cartago". Portanto, todo o tempo que vai desde o reinado de Hieromo
até a fundação de Cartago se reduz a cento e cinqüenta e cinco anos e oito
meses. O templo foi edificado em Jerusalém no ano doze do reinado de Hieromo,
de modo que o tempo que vai da edificação do templo até a fundação de Cartago é
de cento e trinta e três anos e oito meses.
23 Basta o que dissemos sobre o testemunho dos fenícios e egípcios,
tal como aparece nas histórias escritas sobre nossas antiguidades pelo egípcio
Maneton, pelo efésio Menandro e pelo próprio Josefo, o cronista da guerra dos
judeus, feita contra eles pelos romanos. Através desses antigos demonstram-se
que os escritos dos outros são posteriores aos que nos foram dados por Moisés e
mesmo aos dos profetas posteriores. De fato, o último dos profetas, chamado
Zacarias, exerceu sua atividade no reinado de Dano. Também vemos que os
legisladores editaram suas leis posteriormente. Com efeito, se se cita Sólon, o
ateniense, este viveu nos tempos dos reis Ciro e Dano, contemporâneo do profeta
Zacarias e até muitos anos posterior.
Se se trata dos legisladores
Licurgo, Draco ou Minos, nossos livros sagrados ganham deles em antiguidade,
pois demonstra-se que os escritos da lei divina, que nos foi dada por Moisés,
são anteriores ao próprio Zeus, rei dos cretenses, e até à guerra de Tróia.
Todavia, para fazer uma demonstração mais exata de toda essa cronologia, vamos,
com a ajuda de Deus, traçar a história não só dos tempos anteriores ao dilúvio,
mas também dos posteriores. Daremos, no que for possível, o número de todos
eles, remontando à própria origem da criação do mundo, tal como foi consignada
por Moisés, servo de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo. Com efeito,
depois de falar da criação e origem do mundo, do primeiro homem e do que
aconteceu depois, ele também indicou os anos que se passaram antes do dilúvio.
De minha parte, peço a graça do único Deus para dizer com exatidão toda a
verdade, conforme a sua vontade, a fim de que também tu e todo aquele que ler
isto seja guiado pela verdade e pela sua graça. Vou, portanto, começar pelas
genealogias que foram consignadas, isto é, desde o primeiro homem, que serve de
ponto de partida.
24 Adão, até ter o seu primeiro filho, viveu duzentos e trinta
anos; seu filho Set viveu duzentos e cinco anos. Enós, filho deste, viveu cento
e noventa anos; Cainã, filho deste, cento e setenta; Malaleel, filho deste,
cento e sessenta e cinco; Jareta, filho deste, cento e sessenta e dois; Henoc,
filho deste, cento e sessenta e cinco; Matusala, filho deste, cento e sessenta
e sete; Lamec, filho deste, cento e oitenta e oito; este gerou o já mencionado
Noé, que, com quinhentos anos, gerou Sem. No seu tempo, quando tinha seiscentos
anos, aconteceu o dilúvio. Portanto, o total de anos até o dilúvio é de dois
mil, duzentos e quarenta e dois anos. Logo depois do dilúvio, Sem, com cem
anos, gerou Arfaxad. Com cento e trinta e cinco anos, Arfaxad gerou Sala.
Aos cento e trinta anos, Sala
teve o filho Héber, e este por sua vez gerou aos cento e trinta e quatro anos.
Da descendência dele veio a denominação de hebreus. Seu filho Faleg foi pai aos
cento e trinta anos. Ragã, filho deste, foi pai aos cento e trinta e dois anos;
Nacor, filho deste, foi pai aos setenta e cinco; Tarra, filho deste, foi pai
aos setenta; Abraão, filho deste, foi o nosso patriarca e gerou Isaac aos cem
anos. Antes de ter filhos, Isaac viveu sessenta anos e gerou Jacó. Jacó viveu
cento e trinta anos, até a emigração para o Egito, antes mencionada, e a
permanência dos hebreus no Egito durou quatrocentos e trinta anos. E depois de
sair da terra do Egito, passaram quarenta anos no deserto. Portanto, o total de
anos é de três mil novecentos e trinta e oito.
Depois que Moisés morreu,
sucedeu-lhe no comando Josué, filho de Nave, que os chefiou durante vinte e
sete anos. Depois de Josué, o povo transgrediu os mandamentos de Deus e ficou
submetido por oito anos ao rei da Mesopotâmia, chamado Cusaraton. Depois o povo
se arrependeu e teve juízes: Gotonoel, durante quarenta anos; Eglon durante
dezoito; Aot durante oito. Depois, por causa de seus pecados, foram durante
vinte anos dominados pelos estrangeiros. Em seguida, Débora os julgou durante
quarenta anos. Depois os madianitas os dominaram por sete anos. Gedeão os
julgou quarenta; Abimelec três; Tola vinte e três; Jair vinte e dois. Depois os
filisteus e os amonitas os dominaram durante dezoito anos. Depois Jefté os
julgou por seis anos, Esbon sete, Ailon dez, Abdon oito anos. Depois os
estrangeiros os dominaram por quarenta anos. Depois Sansão os julgou vinte anos
e, em seguida, tiveram paz durante quarenta anos. Depois Samera os julgou um
ano, Heli vinte e Samuel doze anos.
25 Depois dos juízes, houve reis entre eles. O primeiro deles foi
Saul, que reinou vinte anos; depois Davi, nosso antepassado, que reinou
quarenta anos. Portanto, o total de anos até Davi é de quatrocentos e noventa e
oito. Depois desses, reinou Salomão durante quarenta anos, que foi o primeiro a
construir o templo de Jerusalém, conforme o desígnio de Deus. Depois dele,
Roboão reinou dezessete anos; depois deste, Abias sete; depois deste, Asa
quarenta; depois deste, Josafá vinte e cinco; depois deste, Jorão oito; depois
deste, Ocozias um; depois deste, Gotolia seis; depois deste, Joás quarenta;
depois deste, Amasis trinta e nove; depois deste, Ozias cinqüenta e dois;
depois deste, Manassés cinqüenta e cinco; depois deste, Amós dois; depois
deste, Josias trinta e um; depois deste, Ocas três meses; depois deste, Joaquim
onze anos; depois deste, outro Joaquim três meses e dez dias; depois deste,
Sedecias onze anos. Depois dos reis, como o povo continuava em seus pecados e
não se convertia, segundo o profeta Jeremias, subiu até a Judéia um rei da
Babilônia, chamado Nabucodonosor, levou o povo judeu para a Babilônia e
destruiu o templo edificado por Salomão. O povo permaneceu setenta anos no
exílio da Babilônia.
Portanto o total de anos até o
estabelecimento na Babilônia é de quatro mil, novecentos e cinqüenta e quatro
anos. Contudo, do mesmo modo como Deus, através do profeta Jeremias, predissera
que o povo viveria exilado na Babilônia, também anunciou de antemão que
voltariam para a sua terra depois de setenta anos. Cumpridos os setenta anos,
veio Ciro, rei dos persas, que, conforme a profecia de Jeremias, no segundo ano
de seu reinado, emanou por escrito um decreto, pelo qual todos os judeus
existentes em seu reino voltariam para seu país e reedificariam a Deus o templo
destruído pelo mencionado rei da Babilônia. Além disso, por disposição de Deus,
Ciro ordenou a seus próprios guardas Sabessaro e Mitrídates para que os
utensílios tomados por Nabucodonosor do templo da Judéia fossem devolvidos e
recolocados no templo. Assim, no segundo ano de Dano, cumpriram-se os setenta
anos preditos por Jeremias.
26 Pode-se ver, assim, como nossos livros sagrados são mais antigos
e mais verdadeiros que os dos historiadores gregos, egípcios ou de outros. Na
verdade, Heródoto, Tucídides e os outros historiadores costumam iniciar seus
relatos mais ou menos nos reinados de Ciro e Dano, por não poderem dizer nada
de exato sobre épocas anteriores. O que é que disseram de grande, se apenas nos
falaram de Dano e Ciro, reis bárbaros; entre os gregos, de Sópiro e Hípias; das
guerras de atenienses e lacedemônios; das façanhas de Xerxes e Pausânias, que
quase morre de fome no templo de Atenas; de Temístocles e da guerra do
Peloponeso; de Alcebíades e Trasíbulo?
Não nos interessa assunto de
muitas palavras, mas esclarecer a quantidade de tempo passado desde a
constituição do mundo, convencendo da inanidade e charlatanice os
historiadores, pois não se trata, como disse Platão, de duas miríades de
miríades de anos desde o dilúvio até seu tempo, nem de quinze miríades,
trezentos e setenta e cinco anos, como dissemos que afirma o egípcio Apolônio.
O mundo também não é incriado, nem o acaso rege tudo, como sonharam Pitágoras e
outros, mas é criado e governado pela providência de Deus, que o criou. Com
isso se esclarece o conjunto do tempo e os anos, para aqueles que querem
obedecer à verdade. Entretanto, para que não pareça que chegamos apenas até
Ciro e descuidamos das épocas posteriores, porque não podíamos completar a
nossa demonstração, com a ajuda de Deus procurarei ordenar também, no que for
possível, a cronologia das épocas seguintes.
27 Ciro reinou trinta e oito anos e foi morto por Tomíris na
Massagétia, durante a sexagésima segunda Olimpíada. A partir dai, os romanos se
engrandeceram, com a força de Deus. Roma tinha sido fundada por Rômulo, que se
conta ter sido filho de Marte e Ilia, na sétima Olimpíada, dezessete dias antes
das calendas de maio, quando então o ano era contado em dez meses. Morto Ciro,
como dissemos, na sexagésima segunda Olimpíada, o tempo desde a fundação de
Roma corresponde a duzentos e vinte anos, quando Tarqüínio, o Soberbo,
comandava os romanos. Este foi o primeiro que desterrou alguns romanos,
corrompeu os jovens e deu direitos de cidadania a eunucos; ele chegou até a
violar virgens para depois dá-las em casamento. Por isso, ele foi chamado em
latim de "Soberbo", que significa "Arrogante".
Foi o primeiro a decretar que
aqueles que o saudassem fossem saudados por outro. Reinou vinte e cinco anos.
Depois dele, assumiram o poder cônsules anuais, tribunos e edis durante
quatrocentos e cinqüenta e três anos, cujos nomes são muitos e seria supérfluo
enumerá-los. Quem quiser saber, os encontrará nas listas feitas por Crísero, o
nomenclador, que foi liberto de M. Aurélio Vero. Ele anotou tudo
detalhadamente, nomes e datas, desde a fundação de Roma até a morte do seu
patrono, o imperador Vero. Portanto, durante quatrocentos e cinqüenta e três
anos, magistrados anuais governaram os romanos, como já dissemos.
Depois vieram os chamados
imperadores: o primeiro, Caio Júlio, que reinou três anos, quatro meses e seis
dias; depois Augusto, cinquenta e seis anos, quatro meses e um dia; Tibério,
vinte e dois anos; outro Caio, três anos, oito meses e sete dias; Cláudio,
treze anos, oito meses e vinte e quatro dias; Nero, treze anos, seis meses e
vinte e oito dias; Galba, sete meses e sete dias; Otão, três meses e cinco
dias; Vitélio, seis meses e vinte e dois dias; Domiciano, quinze anos, dez
meses e vinte e oito dias; Nerva, um ano, quatro meses e dez dias; Trajano,
dezenove anos, seis meses e dezesseis dias; Adriano, vinte anos, dez meses e
vinte e oito dias; Antonino, vinte e dois anos, sete meses e seis dias; Vero,
dezenove anos e dez dias. Assim, os anos dos Césares até a morte do imperador
Vero são duzentos e vinte e cinco. Desde a morte de Ciro e do reinado em Roma
de Tarquínio, o Soberbo, até a morte do imperador Vero, do qual falamos antes,
o total de anos é de setecentos e quarenta e quatro.
28 Resumindo então a cronologia desde a criação do mundo, temos: da
criação do mundo até o dilúvio, dois mil, duzentos e quarenta e dois anos; do
dilúvio ao primeiro filho de Abraão, nosso antepassado, mil, trinta e seis
anos; de Isaac, filho de Abraão, até a estada do povo com Moisés no deserto,
seiscentos e sessenta anos; da morte de Moisés e do comando de Josué, filho de
Nave, até a morte de Davi, nosso antepassado, quatrocentos e noventa e oito
anos; da morte de Davi e do reinado de Salomão até a estada do povo na
Babilônia, quinhentos e dezoito anos, seis meses e dez dias; do reinado de Ciro
até a morte do imperador Aurélio Vero, setecentos e quarenta e um anos. O total
de anos, sem contar meses e dias, desde a criação do mundo, é de cinco mil,
seiscentos e noventa e cinco anos.
29 Tendo reunido o que dissemos sobre a cronologia e tudo o resto,
é fácil ver a antiguidade dos textos proféticos e a divindade da nossa
doutrina. Esta não é recente, assim como a nossa religião, como pensam alguns,
fábula e mentira, ao contrário, mais antiga e mais verdadeira do que a deles.
Com efeito, Talo menciona Bel, rei dos assírios, e o Titã Crono, dizendo que
Bel lutou com os Titãs contra Zeus e os chamados deuses; aí afirma que Gigos,
vencido, fugiu para Tartessos, terra que então se chamava Acté e agora se chama
Ática, da qual Gigos era então rei. Não creio ser necessário contar-te de quem
as outras terras e cidades receberam seus nomes, pois sobretudo tu conheces
suas histórias. É coisa evidente, portanto, que Moisés é mais antigo do que
todos os historiadores (e não somente ele, mas a maior parte dos profetas que
lhe sucederam), e mais do que Bel e Crono e a guerra de Tróia.
De fato, segundo a história de
Talo, Bel é anterior à guerra de Tróia em trezentos e vinte e dois anos, e
acima expusemos como Moisés é anterior à tomada de Tróia em novecentos ou mil
anos. Como Crono e Bel foram contemporâneos, a maior parte não sabe quem é
Crono e quem é Bel. Uns culturam Crono e o chamam de Bel ou Bal, sem saber quem
é Crono e quem é Bel. Entre os romanos o chamam de Saturno, e também estes não
sabem quem dos dois é, se Crono ou Bel. Quanto ao início das Olimpíadas, uns
dizem que adquiriam caráter religioso a partir de Ifito; conforme outros, a
partir de Limo, que também era chamado de Ilio. Acima expusemos a sucessão dos
anos e das Olimpíadas. Por fim, segundo as nossas possibilidades, creio que eu
disse exatamente o que se refere à antiguidade de nossas coisas e o número
completo dos tempos.
Se algum período nos escapou,
terá sido, por exemplo, uns cinqüenta, cem ou até duzentos anos; não, porém,
dez mil ou mil anos, como disseram Platão, Apolônio e outros que escreveram de
forma mentirosa. Talvez também nós não saibamos exatamente o número de todos os
anos, porque não se assinalam nas sagradas Escrituras os meses e dias
supérfluos. Além disso, está de acordo com o que dissemos sobre essas épocas
Beroso, filósofo caldeu, que foi aquele que deu a conhecer aos gregos a
literatura caldéia e disse algumas coisas concordes com Moisés, tanto sobre o
dilúvio como sobre muitos outros acontecimentos. Em parte, ele está de acordo
também com Jeremias e Daniel; por exemplo, no que aconteceu aos judeus sob o
rei da Babilônia, que ele chama de Nabopolassar e os hebreus de Nabucodonosor.
Ele também menciona a destruição do templo de Jerusalém pelo rei dos caldeus e
como, no segundo ano do reinado de Ciro, foram postos os alicerces do novo
templo, que foi terminado no segundo ano de Dano.
30 Os gregos, porém, não mencionam as histórias verdadeiras.
Primeiro, porque só recentemente tiveram conhecimento das letras, coisa que
eles mesmos confessam, uns dizendo que foram inventadas pelos caldeus, outros
pelos egípcios, outros pelos fenícios; segundo, porque cometeram e continuam
cometendo um erro ao não se lembrarem de Deus em seus escritos, mas só assuntos
vãos e inúteis. Vê-se como colocam todo seu afã em citar Homero, Hesíodo e
outros poetas; sobre a glória do Deus incorruptível e único, porém, não só se
esquecem dele, como também o blasfemam.
Mais ainda: perseguiram e até
hoje continuam perseguindo seus adoradores. Em troca, oferecem prêmios e honras
para os que o insultam melodiosamente, mas aos que se esforçam pela virtude e
vivem vida santa, eles apedrejam uns, matam outros, e até hoje os submetem a
tormentos cruéis. Por isso, necessariamente perderam a sabedoria de Deus e não
encontraram a verdade. Portanto, se te agrada, lê cuidadosamente tudo isso,
para que encontres aqui um resumo e um penhor da verdade.
- Siga-me no Facebook para estar por dentro das atualizações!
- Visite meu site principal, www.lucasbanzoli.com
0 comentários:
Postar um comentário
ATENÇÃO: novos comentários estão desativados para este blog, mas você pode postar seu comentário em qualquer artigo do meu novo blog: www.lucasbanzoli.com
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.