5 de novembro de 2015

O livre-arbítrio cristão não existe?


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Este capítulo faz parte da obra: “O Problema do Mal”, ainda em construção.
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Muitos ateus levantam o questionamento de que na cosmovisão cristã não pode existir algo como um livre-arbítrio, porque existe a condenação para os que decidem rejeitar a Cristo. Portanto, se há punição, então não há livre-arbítrio. Ora, isso é uma distorção grosseira do que significa livre-arbítrio. Livre-arbítrio é poder fazer o que quiser. Se a pessoa será punida, recompensada ou ignorada pelo que fez livremente, isso é uma outra questão. O livre-arbítrio não diz respeito à consequencia; diz respeito ao ato em si. As pessoas não são marionetes nas mãos de uma divindade; são seres livres que decidem agir como bem entendem.

O ateu tem todo o direito de achar que a punição pelos maus atos é errada, mas não o de distorcer o sentido de livre-arbítrio para passar a impressão de que quem o praticou não era livre para decidir se praticaria ou não. E se a punição divina pelos maus atos implica que não existe livre-arbítrio na cosmovisão cristã, então nem na cosmovisão ateísta haveria livre-arbítrio, uma vez que existem policiais para prender aqueles que fazem o mal, juízes para condená-los e prisões para encarcerá-los.

Por que os ateus não reclamam também que não existe livre-arbítrio nesta vida, porque para existir livre-arbítrio deveria inexistir punição por certos atos livres? Por que eles não entram na luta contra a polícia, contra os tribunais e contra a prisão? Afinal, se só pode haver livre-arbítrio onde não há punição, então nem na visão ateísta o livre-arbítrio existe. Todas as formas de punição deveriam inexistir completamente para as pessoas serem consideradas “livres”. Um bandido não poderia ser preso por ter assassinado alguém, porque o livre-arbítrio dele (em decidir matar alguém) deveria ser “respeitado”. É óbvio que a conclusão ateísta é barata e superficial.

Livre-arbítrio é Deus permitir que o homem aja da forma que ele escolher agir, da mesma forma que o bandido tem a opção de matar ou não matar. Ele não é obrigado a matar, o traficante não é obrigado vender drogas, o estuprador não é obrigado a estuprar, um aluno não é obrigado a colar, um ateu não é obrigado a rejeitar Jesus. Eles agem assim porque querem. Mas para cada uma das ações há um efeito, seja ela uma consequencia natural ou uma punição imposta. No caso do assassino, a consequencia natural é a outra pessoa morta, e a punição imposta é a prisão.

Nada disso interfere no livre-arbítrio, porque cada pessoa foi livre para agir daquela forma. É justamente por ela ter o livre-arbítrio que ela pode ser punida pelo ato, porque se ela não tivesse a liberdade de escolha ela não poderia ser justamente condenada. Livre-arbítrio é poder ter agido de forma diferente da que agiu, e é com base no pressuposto do livre-arbítrio que pessoas são presas. Se quem fizesse o mal não tivesse a opção de não ter feito o mal, mas o fizesse por obrigação, ninguém seria preso. Eles são presos porque tiveram opção, e eles tiveram opção porque tinham livre-arbítrio.

Se alguém conseguisse criar uma tecnologia tão avançada ao ponto de poder entrar na mente de um ser humano e ter controle sobre suas ações, de modo que o indivíduo fosse completamente impotente para impedir o que se fizesse por meio do seu corpo, este indivíduo não seria condenado por ter feito algo que ele não poderia ter impedido. Essa é a razão pela qual pessoas com sérios problemas mentais não são julgadas pela lei da mesma forma que as pessoas em sã consciência.

Quanto mais o indivíduo pode escolher, isto é, quanto maior for sua capacidade de livre-arbítrio, mais moralmente responsável ele é, e, consequentemente, com mais justiça pode ser condenado e punido. Por isso, a lógica é exatamente a oposta à que é proposta pelos ateus. Em vez de o livre-arbítrio implicar em todo mundo poder agir da forma que bem entender e sem poder ser punido por qualquer coisa que faça, o sentido real de livre-arbítrio é poder agir da forma que bem entender, e justamente por isso ser punido caso escolha agir errado.

Na Bíblia, este conceito é muito claro. “Vejam que hoje ponho diante de vocês vida e o bem, ou morte e o mal” (Dt.30:15). Deus nos coloca as duas opções, nos incita a escolher pelo bem e nos adverte sobre as consequencias da má escolha. Isso é livre-arbítrio. Deus não escolhe em nosso lugar, ele nos deixa escolher. Há uma idade em que o homem já pode “rejeitar o erro e escolher o que é certo” (Is.7:15). Josué colocou essas duas opções – bem e mal – aos israelitas, juntamente com sua própria escolha:

“Se, porém, não lhes agrada servir ao Senhor, escolham hoje a quem irão servir, se aos deuses que os seus antepassados serviram além do Eufrates, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra vocês estão vivendo. Mas, eu e a minha família servi­remos ao Senhor” (Josué 24:15)

Essa mesma escolha o próprio Deus havia colocado nas mãos dos hebreus:

“Hoje invoco os céus e a terra como testemunhas contra vocês, de que coloquei diante de vocês a vida e a morte, a bênção e a maldição. Agora escolham a vida, para que vocês e os seus filhos vivam” (Deuteronômio 30:19)

Até quando alguém decide agir contraditoriamente à vontade de Deus, ele respeita a livre decisão do homem. Deus não impõe uma mão forte para que todo mundo haja rigorosamente igual Ele quer que haja. Jesus queria reunir os israelitas para Si, mas eles não quiseram, e a decisão dos judeus prevaleceu:

“Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedrejas os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram!” (Lucas 13:34)

Mesmo quando alguém escolhe o mau caminho e a punição se torna necessária, Deus não pune por prazer, como quem gosta de ver o sofrimento alheio. Ele pune por justiça“Desejaria eu, de qualquer maneira a morte do ímpio? Diz o Senhor Jeová; não desejo, antes, que se converta dos seus caminhos e viva?” (Ez.8:23), “pois não me agrada a morte de ninguém; palavra do Soberano Senhor. Arrependam-se e vivam!” (Ez.18:32). Ezequiel reitera ainda mais que “Deus não quer a morte do pecador, mas, antes, que se converta e viva” (Ez.33:11). Os apóstolos assimilaram bem esta condição, razão pela qual disseram:

“O Senhor não demora em cumprir a sua promessa, como julgam alguns. Pelo contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento” (2ª Pedro 3:9)

“Isso é bom e agradável perante Deus, nosso Salvador, que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1ª Timóteo 2:3-4)

O segundo tipo de objeção comum ao livre-arbítrio é o texto em que Deus diz endurecer o coração do Faraó (Êx.10:27). Alguns usam isso como “prova” de que o livre-arbítrio não existe, porque, se existisse, Faraó seria livre para agir como quisesse. Essa objeção é fraca e já começa errada por um non sequitur. Mesmo que o fato de Deus ter endurecido o coração de Faraó implicasse em perda do livre-arbítrio, isso não significaria que ninguém tem livre-arbítrio nunca. A única inferência necessária seria que o Faraó, naquela situação específica, teve seu livre-arbítrio temporariamente violado. O texto não diz que Deus endurece o coração de todo mundo, e muito menos que ele endurece pra sempre.

Há, no entanto, muita evidência de que nem mesmo o endurecimento do Faraó implicou em perda de livre-arbítrio da parte dele. Isso porque a Bíblia é clara em dizer que Faraó endureceu seu próprio coração muito antes de Deus fazer isso (Êx.8:15,32). Diferente do que alguns néscios pensam, Faraó não era um homem bonzinho, cheio de boa vontade e empenhado em libertar seus escravos na maior das boas intenções, deixando todo o Egito sem sua mão-de-obra gratuita e abrindo mão de sua maior fonte de renda. Em vez disso, Faraó era o maior senhor de escravos do mundo antigo, uma espécie de Hitler dos tempos antigos. Deus não precisava fazer nada para “endurecer” o coração de um ser desses além de permitir que ele permanecesse endurecido.

Até mesmo alguns autores calvinistas têm reconhecido isso. R. C. Sproul, em seu livro “Eleitos de Deus”, faz uma distinção entre endurecimento ativo e passivo, e afirma o segundo em relação ao Faraó:

O endurecimento ativo envolveria a intervenção direta de Deus nas câmaras internas do coração do Faraó. Deus irromperia no coração do Faraó e criaria nele um mal adicional. Isto garantiria que Faraó produziria o resultado que Deus estava procurando (...) O endurecimento passivo é uma história totalmente diferente. O endurecimento passivo envolve um julgamento divino sobre o pecado que já está presente. Tudo o que Deus tem a fazer para endurecer o coração de uma pessoa cujo coração já é desesperadamente mau é “entregá-la a seu pecado”. Encontramos este conceito de julgamento divino em toda a Escritura.

Não é que Deus coloque sua mão sobre elas para criar o mal novo em seus corações; Ele meramente remove delas sua santa mão de restrição, e deixa que façam sua própria vontade (...) Tudo o que Deus tinha a fazer para endurecer mais a Faraó era remover seu braço. As inclinações malignas de Faraó fizeram o restante.

Portanto, não é correto dizer que Deus impediu Faraó de ser livre. Todas as ações de Faraó foram tomadas a partir de seu próprio livre-arbítrio, que já era inclinado por si mesmo para o mal. Nada disso prova que os seres humanos não possuem liberdade de escolha. Se por um lado é verdade que ninguém pode ser perfeito apenas por meio do bom uso do livre-arbítrio – razão pela qual precisamos da justificação através de Cristo – também é verdade que podemos evitar muitos males mediante um uso correto. O livre-arbítrio não é bom ou mal em si mesmo, ele simplesmente é o potencial para decidirmos agir bem ou mal. Um dia Deus restringirá seriamente o livre-arbítrio, e isso será abordado mais adiante. Por hora, Deus age conforme dito em 2ª Samuel 14:14:

“Que teremos que morrer um dia, é tão certo como não se pode recolher a água que se espalhou pela terra. Mas Deus não tira a vida; pelo contrário, cria meios para que o banido não permaneça afastado dele” (2ª Samuel 14:14) 

Não é Deus quem “tira a vida”. Ao contrário: Deus cria meios para que as pessoas se voltem a ele, mas não coercitivamente, ao ponto de escolher pela própria pessoa. De modo que, se alguém faz o mal, não é por Deus não ter providenciado meios de não fazê-lo, mas porque a própria pessoa decidiu se rebelar contra a boa vontade de Deus, mediante o mau uso de seu livre-arbítrio. 

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,


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